A gota ficou conhecida como a “doença dos reis” devido à sua aparente predilecção pelos monarcas. A sua marca fez-se sentir em vários momentos da história — e até pode ter sido decisiva para o avanço da Revolução Americana.
Já muitas doenças devastaram o mundo. Desde a arrebatadora peste negra que dizimou um terço da população europeia na Idade Média, a doenças que se concentram mais em certas regiões, como a malária em África, sem esquecer a covid-19, que em 2020 parou o mundo.
Mas nem todos sofremos com as mesmas doenças — e a gota é um exemplo disso. Conhecida como a “doença dos reis”, era de esperar que a gota tivesse um impacto particular no rumo da história e na vida dos monarcas que dela padeceram.
A gota é uma doença caracterizada pelo aumento do ácido úrico no sangue e a sua cristalização em monourato de sódio. Quando acumulados nas articulações, estes cristais causam surtos de artrite aguda, com grande desconforto e dor e frequentemente causam deformações nas mãos e nas nos pés.
Uma das principais causas da gota é uma ter dieta rica em carne e álcool, o que pode ajudar a explicar a incidência acrescida desta doença nos monarcas, que eram geralmente adeptos deste tipo de alimentação pouco recomendável.
O impacto político da gota
O infâme Henrique VIII foi um dos mais famosos reis a sofrer com a gota. Tal como os seus vários retratos dão a entender, o monarca inglês tinha excesso de peso, peso esse que ganhou depois de ter sofrido uma lesão quando era jovem (provavelmente durante um torneio de justas) que o impediu de fazer exercício.
Com a falta de exercício e a sua dieta pouco saudável, Henrique VIII foi acumulando quilos a mais e a sua cintura chegou mesmo a medir 132 centímetros. A sua gota começou a dar sinais de agravamento e o monarca acabou por deixar de conseguir andar, tendo de ser carregado numa cadeira. A sua frustração com a doença terá sido uma das causas para o seu constante mau humor.
Piero di Cosimo de Medici, governador de Florença entre 1464 e 1469, também sofreu com a doença, tanto que até recebeu a alcunha Piero, o Gotoso. A sua saúde fragilizada foi uma constante ao longo da vida e a sua gota era tão grave que até o deixou acamado e acabou por o matar aos 53 anos, em 1469.
A sua imagem enquanto líder ficou foi afectada pelos seus problemas de saúde, tendo até sido vítima de uma tentativa de golpe por parte de alguns familiares que achavam que era demasiado fraco para governar, escreve o Ancient Origins.
A gota na monarquia portuguesa
E se Piero quase foi afastado do poder por causa da sua gota, Carlos V acabou por ser mesmo. O Imperador do Sacro Império Romano-Germânico que foi também rei de Espanha e casou com Isabel de Portugal, filha de Manuel I, governou desde 1519 até 1556. Ao longo do seu reinado, ganhou uma reputação por comer muita carne e abusar no vinho e na cerveja.
A sua gota acabou por ser tão grave que o deixou aleijado e o impossibilitou de liderar o exército. Quando a França conquistou Metz em 1552, Carlos atrasou o seu contra-ataque devido a uma crise de gota, o que lhe custou uma pesada derrota. O imperador acabou por abdicar depois da humilhação até chorou no seu discurso, culpando a gota pelos seus fracassos.
Em Portugal também houve um caso mortal de gota — nada mais nada menos do que o filho de Carlos V, o rei Filipe I de Portugal e II de Espanha. Filipe I teve o primeiro surto de gota aos 36 anos e o seu estado agravou-se a partir dos 40 anos, a sua saúde ficou ainda mais frágil e o monarca acabou por perder a mobilidade por causa da doença.
Já no leito da sua morte, reza a história que o odor que emanava da cama do monarca era quase insuportável, devido as chagas e à incontinência urinária de que também sofria. A gota impedia o rei de tomar banho, algo que o desgostava bastante. Filipe I acabou por morrer a 13 de setembro de 1598.
A gota e a Revolução Americana
A gota também deixou marcas na história dos Estados Unidos da América. William Pitt ocupou o cargo de primeiro-ministro inglês, mas tinha uma famosa simpatia especial pelos americanos.
O político inglês também sofria de gota — e a sua doença acabou por ser decisiva num momento que marcou o início da tensão entre ingleses e americanos que acabou por culminar na independência americana. Tudo porque quando o Parlamento britânico aprovou a Lei do Selo em 1765, que obrigava os colonos a pagar impostos pesados sobre vários produtos, Pitt faltou à sessão parlamentar por estar doente.
Quando voltou ao trabalho, Pitt rapidamente reverteu a lei argumentando que “os americanos são os filhos, não os bastardos da Inglaterra“. Mas a sua tentativa de acalmar a revolta do outro lado do Atlântico foi sol de pouca dura.
Durante a sua crise de gota seguinte, o Parlamento voltou a desafiar a sua vontade e aprovou um enorme aumento de impostos sobre as importações de chá feitas pelos colonos – uma decisão que motivou a famosa Boston Tea Party que acendeu o espírito independentista nos Estados Unidos.
Quem sabe, se Pitt não tivesse sofrido com penosas crises da doença dos reis nestes momentos decisivos, talvez hoje em os Estados Unidos continuassem a ser território de Sua Majestade.
Ainda bem que o Filipe I dormia em Espanha! No entanto o mau cheiro chegou a Portugal.