Num momento em que os olhos da Europa estão concentrados no leste do continente, a Alemaha experienciou, como consequência do conflito na Ucrânia, mudanças profundas ao nível da sua política de Defesa, impensáveis num passado recente.
Três dias após a invasão russa da Ucrânia, Olaf Scholz rompeu com o pacifismo alemão do pós-guerra, prometendo conferir ao seu país os recursos necessários para liderar em questões de segurança na Europa. No entanto, serão as mulheres são agora encarregadas de levar a cabo essa mudança – a maior mudança de política externa na Alemanha desde a Segunda Guerra Mundial.
A Ministra da Defesa Christine Lambrecht estará encarregue de supervisionar um programa de rearmamento de 100 mil milhões de euros, destinados aos militares alemães. Annalena Baerbock, a Ministra dos Negócios Estrangeiros, ficará responsável por elaborar a primeira estratégia de segurança nacional da Alemanha. Nancy Faeser, por sua vez, será a responsável pela segurança interna, estando também a organizar o acolhimento de centenas de milhares de refugiados ucranianos.
Sendo a guerra da Ucrânia um acontecimento histórico por si só, marcando o regresso dos conflitos armados à Europa, esta coincide com um momento único na política alemã, já que três mulheres estão responsáveis por coordenar as mudanças culturais e estratégicas que o país pretende implementar nesta área. Apesar do passo importante em matéria de igualdade de género, esta é apenas a primeira vez que a potência europeia tem uma mulher nas pastas dos Negócios Estrangeiros e da Administração Interna — sendo Christine Lambrecht a terceira ministra da Defesa.
Tal como muitos notam, foi só após a saída de Angela Merkel que tal aconteceu, tal como a aposta no financiamento do efetivo militar do país. Na Alemanha, à luz da sua própria história, residia a ideia de que tal aposta não era necessária para garantir a segurança do território. Segundo palavras de Roderich Kiesewetter, deputado conservador e antigo soldado, tivesse sido o seu partido a avançar com a proposta de aumentar o financiamento da Defesa e “um tumulto” começaria no país com acusações dos movimentos pacifistas.
Na realidade, caberá a Christine Lambrecht, outrora ela própria participante em marchas contra o uso da energia nuclear e a favor do desarmamento, a tarefa de adquirir drones armados e uma nova geração de jatos militares capazes de lançar bombas nucleares. Como nota o The New York Times, Lambrecht é uma antiga ministra da Justiça que se posiciona na fação mais à esquerda do seu partido e sem experiência militar, personificando, por isso, a mudança de posição de muitos dos habitantes do seu país no que respeita ao investimento na Defesa.
Antes da guerra, Lambrecht falou por muitos sociais-democratas quando insistiu em “não atrair” o gasoduto Nord Stream 2 “para o conflito da Ucrânia”. Defendeu a proibição da Alemanha de enviar armas para zonas de conflito, oferecendo à Ucrânia 5.000 capacetes e um hospital de campanha. Agora, ela descreve orgulhosamente a Alemanha como um dos maiores fornecedores de armas à Ucrânia e defende planos para aumentar as despesas militares para além dos 2% do Produto Interno Bruto.
“Temos de dizer adeus à ideia de que vivemos numa Europa pacífica“, disse a Sra. Lambrecht numa entrevista recente. “As ameaças estão a aproximar-se – elas aproximaram-se. A ideia de que há fronteiras que são aceites por todos, isso acabou. Vimos como Putin está a espezinhar todo o direito internacional”. A governante é honesta sobre as suas próprias debilidades — e as do seu país — uma postura que os observadores dizem dar-lhe credibilidade junto daqueles que ainda precisam de ser convencidos.
“Se for honesta, não o poderia ter imaginado antes desta guerra ofensiva brutal“, disse ela. “Há um antes e um depois”.”Estamos do lado dos nossos aliados e estamos conscientes da responsabilidade que devemos e queremos assumir nesta aliança. Não estamos apenas a falar, mas a tomar medidas concretas“.
Uma dessas medidas é desenvolver uma estratégia de segurança nacional, a primeira da Alemanha, e a mulher responsável por ela é a Ministra dos Negócios Estrangeiros, Annalena Baerbock. Especialista sobre assuntos relacionados com a Rússia, ela está determinada a consagrar o atual consenso sobre uma política externa mais musculada e baseada em valores, numa doutrina que perdure.
“Se não tivesse havido a guerra, algumas destas decisões poderiam nunca ter sido tomadas”, apontou. “Quero ter a certeza de que não esqueceremos em quatro meses ou mesmo em quatro anos porque tomamos algumas destas decisões”. Para Baerbock, do Partido Verde, não se trata apenas de uma mudança política. É uma mudança na forma como a Alemanha vê e se define a si própria, não se escondendo atrás da sua história, mas tentando ativamente moldar o futuro.
“É bom conhecer a história, mas não podemos formular o futuro apenas com o passado”, disse. “Como Alemães, temos uma responsabilidade especial, mas temos de trabalhar para o futuro”. Aos 41 anos, Annalena Baerbock representa uma nova geração na política alemã, uma geração que atingiu a maioridade após a queda do Muro de Berlim. Tal como outros da sua geração, ela não tem medo de falar de “liderança” ou do “führen” – um longo tabu numa Alemanha traumatizada pela memória do seu outrora Führer, Hitler.
Enquanto mãe de duas crianças, Baerbock tem uma diplomacia de guerra personalizada e humanizada, sempre com um olho no futuro. “Cresci numa União Europeia unida em paz, e como alemã ocidental é minha responsabilidade assegurar o mesmo para os meus filhos e netos“, disse ela. “Na verdade, tenho a responsabilidade de liderar para que outras gerações nos países vizinhos possam também viver em paz”. E isto é uma “mudança de identidade“.
Defendendo abertamente uma “política externa feminista”, a descreveu a sua chegada ao poder como “um choque cultural” para a comunidade de segurança alemã dominada por homens, algo que partilha com Nancy Faeser, a ministra do Interior. “Deve ser normal no ano de 2022 que as mulheres chefiem agências de segurança”, disse a Faeser numa entrevista. “É um sinal importante e bom para a Alemanha”.
Faeser é também responsável por gerir a chegada de cerca de 250 mil refugiados da Ucrânia – um número que se espera que exceda os 1,2 milhões que vieram da Síria, Iraque e Afeganistão em 2015 e 2016. “Uma prioridade é cuidar de mulheres jovens e crianças”, disse. “Muitas destas mulheres e crianças estão traumatizadas não só pela guerra, mas porque tiveram de deixar para trás os seus maridos, pais e filhos”. Elas precisam de cuidados especiais. Porque tantas mulheres vêm sozinhas, estamos particularmente vigilantes”.
Como tal, a governante aumentou o número de agentes da polícia nas estações de comboios onde chegam refugiados para se protegerem contra traficantes e predadores sexuais. Quando não está a planear como acolher refugiados ou a promover um sistema conjunto de registo e distribuição dos mesmos entre os 27 países da UE, o trabalho de Faeser inclui também vigiar as infra-estruturas críticas, em risco devido aos ciberataques e campanhas de desinformação russas.
“Desde que a guerra começou, temos visto campanhas de desinformação russas a vender a narrativa de que a Ucrânia tem de ser libertada“, disse Faeser.
Um dos casos mais dramáticos de notícias falsas destinadas a despertar a simpatia russa foi um vídeo amador mostrando uma mulher a contar em lágrimas como um adolescente russo tinha sido espancado até à morte por refugiados ucranianos. “O vídeo era falso, isso está confirmado”, esclareceu Faeser. Perita nas questões do extremismo de extrema-direita e do terrorismo de extrema-direita, não é estranha à propaganda online e ao incitamento ao ódio.
Até agora, Faeser tem sido largamente poupada aos comentários sexistas que as suas colegas ministras têm recebido. Annalena Baerbock, que concorreu como candidata verde a chanceler antes de se juntar ao governo do Scholz numa coligação, foi alvo de várias campanhas de desinformação online, algumas das quais orquestradas por russos.
Mas com o ressurgimento dos militares alemães agora nas manchetes, é Christine Lambrecht, a ministra da Defesa, que se tornou o alvo principal. “Será que esta ministra sabe fazer a guerra?” perguntou recentemente o diário mais vendido da Alemanha, Bild. Por enquanto, Lambrecht encara as críticas de ânimo leve. “Sinceramente, estou muito ocupado e não tenho tempo para pensar no porquê de algumas coisas estarem escritas sobre mim”, disse antes de embarcar numa viagem para Washington. “O meu trabalho é tornar os militares significativamente melhores“. Julguem-me no final”.