As primeiras notificações para chamar as empresas a repor as ajudas de Estado ilegais não chegaram a ser enviadas no final de 2021.
O Governo previa que o fisco começasse a notificar até ao final do ano passado as empresas da Zona Franca da Madeira (ZFM) obrigadas a repor nos cofres públicos mil milhões de euros em benefícios de IRC concedidos de forma irregular pelo Estado português, mas a administração fiscal ainda não recebeu ordem para avançar.
Segundo o Público, o processo de recuperação dos auxílios declarados ilegais está a ser acompanhado em Bruxelas pela Comissão Europeia, e Lisboa aguarda uma resposta do executivo comunitário para dar esse passo.
Questionado se as primeiras notificações chegaram as ser emitidas no final de 2021, no horizonte projetado em outubro no Parlamento pelo Governo, o Ministério das Finanças afirmou, através do seu gabinete de imprensa, que as ordens para o envio dos primeiros ofícios ainda “estão pendentes de uma notificação da Comissão Europeia”.
Quando, em dezembro de 2020, Bruxelas tomou a decisão final que vincula Portugal a reaver as ajudas, deu oito meses ao Estado para executar essa obrigação, até agosto de 2021, mas o processo está a demorar mais tempo.
Portugal está obrigado a recuperar os auxílios declarados incompatíveis. Para isso, tem de exigir a devolução das ajudas às entidades licenciadas na ZFM de 2007 a 2014 que beneficiaram de uma taxa de IRC reduzida e que não cumpriram as condições relativas aos auxílios de Estado ao funcionamento das empresas situadas nas regiões ultraperiféricas.
As normas europeias pressupunham que as sociedades só beneficiassem de um IRC reduzido, se criassem e mantivessem um determinado número de postos de trabalho no arquipélago e se as reduções fiscais só se aplicassem aos lucros obtidos com as atividades realizadas no território.
Mas a Comissão Europeia considerou que Portugal violou esse compromisso e declarou a existência de um auxílio ilegal.
Segundo a Comissão, Portugal só poderia conceder benefícios às empresas que criassem “postos de trabalho na Madeira” e aplicar as reduções de IRC aos rendimentos com origem nas “atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira”. Bruxelas encontrou dois problemas.
Por um lado, “os lucros que beneficiaram da redução fiscal não se limitavam aos lucros relacionados com atividades efetiva e materialmente realizadas na Madeira”.
Por outro, “o número de postos de trabalho tidos em conta por Portugal para o cálculo do montante do auxílio” incluía empregos “criados fora da Zona Franca da Madeira e mesmo fora da União Europeia”.
As condições acordadas com Bruxelas em 2007 e 2013 pressupunham que só os empregos criados e mantidos na região poderiam ser tidos em conta para o cálculo do benefício fiscal.
Além disso, concluiu a Comissão, “os postos de trabalho a tempo parcial foram incluídos nos postos de trabalho a tempo integral e os membros do conselho de administração foram contados como trabalhadores em mais do que uma empresa beneficiária do regime, sem haver recurso a um método de cálculo adequado e objetivo”.
Primeiro, os casos complexos
Nem o Governo português, nem a executivo comunitário especificam o que está pendente para que as notificações avancem.
Contactada pelo Público, a Comissão Europeia rejeitou comentar o “conteúdo” dos contactos com Portugal.
Um porta-voz sublinhou, no entanto, que “as autoridades portuguesas estão a fazer progressos na identificação dos beneficiários e do montante exato do auxílio a recuperar” e que a Comissão “está em contacto com as autoridades portuguesas de forma próxima e construtiva sobre a implementação da decisão”.
Uma fonte com conhecimento do processo de recuperação explicou que os cerca de mil milhões de euros de auxílios declarados ilegais dizem respeito a cerca de 300 empresas, havendo alguns montantes relevantes concentrados num núcleo mais restrito de beneficiários.
A obrigação de repor as ajudas abrange as entidades que receberam mais de 200 mil euros de incentivos. Basta que a soma das ajudas de três anos chegue àquele teto para que uma sociedade seja obrigada a repor os auxílios.
O Governo prevê que as primeiras notificações sigam para as “empresas que já cessaram a sua atividade”, pelo facto de esse ser um processo “mais complexo”, segundo adiantou novembro, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais.
Pelas regras europeias, Portugal tem de pedir a devolução das ajudas mesmo às empresas que já não estão na ZFM, devendo encontrar a unidade económica considerada a beneficiária do auxílio,mesmo com alterações societárias.
Segundo as orientações europeias em vigor, “se, na fase de execução de uma decisão de recuperação, o auxílio não puder ser recuperado junto do beneficiário original e se tiver sido transferido para outra empresa, o Estado-Membro deverá estender a recuperação à empresa que efetivamente usufrui da vantagem na sequência da transferência de atividades e assegurar que a obrigação de recuperação não é contornada”.
Em Bruxelas, este dossier está a ser acompanhado pela Direção Geral da Concorrência, dirigida pelo francês Olivier Guersent, serviço que está alçada da vice-presidente da Comissão, a dinamarquesa Margrethe Vestager.
Em Portugal, o Governo de António Costa e o Governo Regional de Miguel Albuquerque criaram um grupo de trabalho para acompanhar o processo de recuperação.
Além da Autoridade Tributária e Aduaneira nacional e da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (AT-RAM), fazem parte mais três estruturas.
São elas a Direção-Geral dos Assuntos Europeus (do Ministério dos Negócios Estrangeiros), a Direção Regional dos Assuntos Europeus (na dependência da Vice-Presidência do Governo Regional da Madeira) e o Gabinete de Planeamento, Estratégia, Avaliação e Relações Internacionais Ministério das Finanças (Gpeari).