“Estamos a educar já com medo”, avisa psicóloga

O dia 1 de Outubro trouxe maior liberdade mas “há muito medo, ainda”. Há mudanças que vieram para ficar – e algumas são positivas. Stephanie Rowcliffe fala ao ZAP sobre os efeitos do coronavírus na cabeça. No passado, no presente e no futuro.

ZAP – Quando te apercebeste de que havia um vírus que ia parar o mundo?
Stephanie Rowcliffe – Estava em Lisboa a ver a série ‘A peste’. Era um cenário muito parecido, parecia que alguém muito iluminado estava a adivinhar isto, embora num cenário muito mais remoto. E lembro-me de pensar: realmente, esta preocupação começa-se a sentir cá. Na altura mais em Itália. Mas foi nesse momento que senti que isto se estava a aproximar. Não era só na China, como se fosse num filme. Na nossa vida, naquela altura, tudo que estava nos ecrãs era muito longe, não tinha impacto em nós.

ZAP – Quando te apercebeste de que isto iria afectar a cabeça de muita gente?
Stephanie – Foi em duas circunstâncias. A primeira: ver como as pessoas estavam a reagir quando iam, por exemplo, ao supermercado. Ir às compras já era uma ameaça. E a segunda: como trabalho numa escola, comecei a aperceber-me lá, nas professoras, na equipa. Acho que, quando tivemos de utilizar máscara, foi quando me apercebi dos contornos significativos. Depois veio o confinamento… O pânico…

ZAP – Devido ao avanço na ciência e na medicina, as pessoas pensavam que o mundo nunca iria parar por causa de um vírus?
Stephanie – Sim. Pensámos que tínhamos evoluído mais. Quando víamos pessoas com máscaras noutras cidades, noutros países, achávamos estranho. Mas era sempre uma coisa que nunca iria acontecer aqui, connosco. Foi uma fronteira. Já tínhamos passado por alguns desafios, mas algo assim… Isto de se parar tudo… Uma coisa é a ameaça em si, a nível físico, mas a precaução levou-nos a parar tudo. Sabemos que isto está a ocorrer no mundo todo e não sabemos – ainda hoje não sabemos – quando isto tem fim.

ZAP – Por termos mais informação do que noutras crises, para morrer menos gente tivemos que fechar tudo.
Stephanie – E estamos a ver tudo em directo. Temos a informação, podemos é não saber geri-la.

ZAP – Qual seria o primeiro impacto nas pessoas? Qual foi o teu primeiro pensamento sobre isso?
Stephanie – Uma mistura de reacções. Algumas pessoas não acreditavam que isto seria relevante, outras sentiram logo pânico. Como trabalho com crianças e com as suas famílias, a minha grande preocupação foi pensar: como se vai dar continuidade a uma infância, quando estamos todos fechados, cada um no seu canto? Como é que as crianças sabem que nós ainda estamos lá, que não desaparecemos? Como é que os pais sabem que não estão sozinhos? Apesar de parecer que estão sozinhos. A outra prioridade foi: estamos a educar já com medo. Crianças separadas, isoladas, sem tocarem umas nas outras, sem tocarem nas outras pessoas. Como se a outra pessoa fosse perigosa, tóxica.

ZAP – Vimos imagens em creches de crianças isoladas, nos seus metros quadrados. Esse isolamento imposto influencia o crescimento das crianças?
Stephanie – Tem um impacto imenso. Somos todos resilientes mas são experiências muito básicas, na fase formativa, que moldam o futuro. Há pais que afastam os filhos de outras pessoas na rua, que atravessam a rua para não se cruzarem com mais ninguém. São gestos que ficam na memória.

ZAP – E os pais que passaram a trabalhar em casa, enquanto olhavam pelos filhos ao mesmo tempo?
Stephanie – Foi devastador para algumas famílias. Gerir tudo no mesmo espaço… Quando é que estamos em casa? E no trabalho? E na escola? Foi complicado gerir o espaço e gerir os papéis. Sentir que não estamos a fazer nada bem.

ZAP – Mudaste alguma abordagem, algum método, durante este período?
Stephanie – Acho que sim. Mudança de abordagem não, mas por exemplo passei a estar disponível noutros horários, para casos de emergência. Estávamos mesmo em estado de emergência. Não tanto pelo lado físico, mas pela saúde mental. Deixou de haver noites, fins-de-semana. Era preciso agir. Foi duro porque não tínhamos todas as soluções, nunca tínhamos pensado nisto. As pessoas estavam desorientadas em casa, houve o sentimento de abandono em algumas pessoas. Uma psicóloga deve transmitir segurança, tranquilidade; mas como se faz isso quando a própria pessoa não sente isso? Conseguia transmitir isso num telefonema com alguém mas, mal se desligava o telefone, voltava para o meu mundo, só meu. Eu própria estava a tentar gerir as minhas preocupações imensas.

ZAP – Por onde é que conseguias transmitir alento ou esperança?
Stephanie – Afastávamo-nos de ecrãs, até aqui, mas isso foi a chave para mostrar presença. Era uma prova de que estamos aqui, de que estamos bem. E víamos que as coisas iriam reabrir e começámos a focar-nos nisso: o que vamos fazer quando estivermos juntos?

ZAP – A utilização de máscara deixou de ser obrigatória em cafés, restaurantes, mercearias… Mas espreitas um desses estabelecimentos e toda a gente, ou quase, está com máscara.
Stephanie – Acho que há muito medo, ainda. Isto fica como um reflexo. Já nos parece estranho não ter máscara. Isto demora.

ZAP – Muitas pessoas não vão voltar a tirar a máscara?
Stephanie – Tanto se disse que não nos íamos livrar da máscara, que essa ideia ficou como perpétua. Ficou a crença de que “nunca mais” iríamos tirar a máscara.

ZAP – Vamos demorar anos a voltar ao que éramos?
Stephanie – O contacto físico vai voltando, aos poucos. Outras coisas vão ficar, os planos B vão ficar, como a realização de reuniões à distância. E outras mudanças vieram para ficar em algo muito importante: a higiene. E isso são mudanças positivas.

Entrevista completa:

Nuno Teixeira, ZAP //

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