A ex-jornalista da Reuters Aye Min Thant, premiada em 2019 com o Pulitzer por histórias que envolviam militares birmaneses e assassinatos da minoria rohingya, afirmou que “os militares estão a cometer crimes de guerra há muito tempo”.
Aye Min Thant nasceu em Rangum, em Myanmar, e mudou-se aos com a família para os Estados Unidos (EUA) em 2000. De volta ao país, voltou a sair – pela terceira vez – depois do golpe, a 01 de fevereiro. “Fiquei preocupada com a minha segurança”, referiu ao Expresso. “Os miúdos que estão nas ruas estão a lutar para manterem o futuro deles, para manterem a esperança e o otimismo que têm vindo a construir nos últimos 10 anos”.
Ao semanário, contou que o golpe começou por volta das 03:00, com os camiões dos militares a entrarem em Naypyidaw e a deter pessoas. “Não foi uma completa surpresa. Houve tensões em janeiro, que culminaram no 01 de fevereiro, quando os militares disseram que tinham preocupações com a fraude eleitoral [eleições de novembro]”, disse.
“A razão porque saí [do país] prende-se com a quantidade de pessoas que conheço, incluindo membros da minha família, que foram detidas ou perseguidas por forças de segurança. E isto inclui jornalistas, ativistas, pessoas que trabalharam na sociedade civil. E tendo trabalhado na comunicação social anteriormente, cobrindo especialmente temas como a crise dos rohingya e histórias sobre os militares, fiquei preocupada com a minha segurança desde que o golpe começou”, relatou.
Aye Min Thant abandonou Myanmar por três vezes. Em 2000, fugiu com a família – etnicamente chinesa – devido a uma discriminação generalizada na sociedade e em termos legais. Após ter publicado os artigos com a equipa da Reuters, foi barrada do país por seis meses. A terceira vez foi a 24 de março, após o golpe.
Para a jornalista, este foi um “golpe desleixado”. “O golpe aconteceu a 01 de fevereiro, que era quando o novo Governo ia tomar posse depois das eleições de novembro. Foi inteligente, estava toda a gente reunida na capital, Naypyidaw, para formar o Governo. Detiveram os membros do parlamento numa área residencial. Não os levaram para lado nenhum, cercaram-nos basicamente”, indicou.
O golpe “foi praticamente uma reação à reação popular, em oposição do que pensarias quando militares fazem um golpe, disciplinados, organizados e tudo planeado”, continuou, apontando que esse desleixo viu-se também nos media. “Revogaram a licença de cinco grupos de media, mas não de todos. Detiveram alguns jornalistas, outros não. Foram a casa de alguns jornalistas buscá-los, outros ainda andavam na rua, com câmaras muito grandes. Não era difícil apanhá-los, se quisessem”.
“Serve o mesmo para a sociedade civil e ativistas: as detenções pareceram aleatórias, assim como o quando e porquê, ao contrário de algo muito sistematizado. Viu-se isso nas fronteiras também. Algumas pessoas foram para o aeroporto, umas foram detidas, outras não. Isso foi o mais surpreendente”, acrescentou.
A ex-jornalista da Reuters indicou que “os militares estão a cometer crimes de guerra há muito tempo. Uma das piores coisas é terem matado 35 crianças, que saibamos, desde o início do golpe. Estamos com cerca de 500 mortos. Uma grande percentagem das mortes são crianças, especialmente se considerarmos o facto de que a maioria das pessoas nas ruas são jovens mas não são miúdos. Um bebé de um ano foi atingido a tiro. O mais novo a morrer tinha cinco anos. Houve um homem a quem pegaram fogo”.
E continuou: “Testemunhas no local disseram que ele era um vigilante do bairro, que foi agredido pela polícia ou militares. Ele foi agredido e depois levaram-no para uma barricada de um bairro, feita de pneus, e queimaram-no vivo. Eles também começaram a usar granadas em áreas residenciais. Recentemente, começaram a largar bombas em zonas rurais. Estão deslocadas entre 3000 e 10 mil pessoas do estado de Karen, onde largaram as bombas”.
“Já estamos a ver que os militares estão a atacar civis no estado de Karen, não há razões para não acreditar que continuarão a matar e a cometer crimes contra a Humanidade contra quem quiserem na verdade, mas especialmente contra grupos minoritários, para consolidarem o poder e para voltarem a focar-se nestas áreas onde estão minorias”, apontou igualmente.
Quanto aos presos políticos, indicou que nem todos estão detidos nas mesmas condições. “Aung Suu Kyi e outros membros da elite política estão detidos em prisão domiciliária, mas não é claro onde estão. No início, muitos deles foram detidos nas suas habitações, na capital. Muitos já foram libertados, mas os que não o foram estão em parte incerta. Muitos deles não tiveram possibilidades de contactar com as suas famílias ou com os advogados”.
Embora não tenha previsto os próximos dias, afirmou que o seu maior receio é que a situação evolua para uma guerra civil. “Não há como dar um passo atrás para os militares. Se estão a massacrar pessoas, se usam granadas e lançadores de granadas para dispersar manifestantes, não podem voltar aos canhões de água. Não vemos nenhum movimento em direção a um diálogo ou negociação”, concluiu.
Aung San Suu Kyi está bem de saúde, diz advogado
Min Min Soe, o advogado da líder deposta de Myanmar, Aung San Suu Kyi, de 75 anos e cujo paradeiro é desconhecido, disse à Reuters que esta está de boa saúde, depois de uma vídeo-chamada durante a qual discutiram o seu caso em tribunal. A sua próxima audiência em tribunal está marcada para quinta-feira, noticiou o Público.
Suu Kyi é acusada de violar uma lei de importação e exportação por ter seis walkie-talkies em casa, de violar as normas sanitárias de controlo da pandemia e incitamento a protestos públicos. Pode ser ainda ser acusada de corrupção. A defesa diz que todas as acusações são falsas e forjadas pelo exército.
Raras são as vezes em que Suu Kyi apareceu em público, com as audiências a ocorreram por vídeo-chamada. Dois membros do seu partido, que venceram as eleições de novembro de 2020, morreram depois de terem sido detidos.
Alemanha pede aos cidadãos que saiam de Myanmar
O Governo alemão pediu aos seus cidadãos que deixem Myanmar o mais rápido possível, devido ao agravamento da situação e aumento da violência, no mesmo dia em que a empresa francesa Voltalia anunciou que abandona o país, avançou esta quarta-feira a agência Lusa.
“Uma nova escalada de violência pelas forças de segurança não pode ser descartada e é imprevisível como a situação irá evoluir”, disse o Ministério dos Negócios Estrangeiros alemão num comunicado.
Os cidadãos alemães são, portanto, convidados a “deixar o país o mais rápido possível” e enquanto os voos comerciais estiverem disponíveis. Também é altamente recomendável evitar todas as concentrações e manifestações.
Por outro lado, a produtora francesa de energias renováveis Voltalia vai “pôr fim às suas atividades” em Myanmar, segundo um comunicado divulgado esta quarta-feira pela companhia. “Devido à crise política e humanitária em Myanmar, a Voltalia decidiu retirar-se do país e tomou medidas para encerrar as suas atividades” no local, anunciou a empresa.
A Voltalia está presente em Myanmar desde 2018, fornecendo eletricidade a “156 torres de telecomunicações” em áreas rurais das regiões de Bago de Irrawaddy. Emprega “43 pessoas” e “está a fazer todo o possível” para garantir “a sua segurança”, com as suas atividades no país representarem “menos de 1% da produção da empresa”.
No domingo, o grupo francês EDF anunciou que tinha suspendido um projeto de barragem hidroelétrica em Myanmar. Várias organizações não-governamentais (ONG) também pediram à Total, ativa no setor de gás em Myanmar, que “pare de financiar a junta” militar.
O grupo petrolífero francês referiu-se domingo a um comunicado divulgado dois dias antes, no qual garante conduzir “as suas atividades de forma responsável, no respeito das leis e dos direitos humanos universais”.
Mais de 500 civis morreram, pelo menos uma centena deles no último fim de semana, devido à repressão aos protestos pró-democracia pela polícia e militares desde o golpe militar ocorrido a 01 de fevereiro, segundo dados da Associação de Assistência a Presos Políticos (AAPP).
O exército birmanês bombardeou civis em áreas controladas pelos guerrilheiros Karen ao longo da fronteira com a Tailândia, causando milhares de deslocados, enquanto o conflito com guerrilheiros da minoria a Kachin também aumentou.