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Golpe de Estado em Myanmar “é um mistério” (e pode ter sido provocado por um General)

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European Parliament / VisualHunt

Aung San Suu Kyi no Parlamento Europeu

Os militares voltaram a tomar o poder em Myanmar, país que já foi um dos mais ricos da Ásia e que hoje vive uma profunda crise, política e económica, motivada por disputas étnicas, religiosas e pelos abundantes recursos naturais. Numa nação de muitas cores, nem a outrora heroína dos Direitos Humanos Aung San Suu Kyi é a preto e branco.

Myanmar está de novo nas mãos dos militares que detiveram a chefe de Governo Aung San Suu Kyi, bem como outros políticos do seu partido, a Liga Nacional pela Democracia.

O General Min Aung Hlaing é o novo líder no comando. Trata-se de um militar sénior que foi acusado, em 2019, pelo Tribunal Penal Internacional de Haia, de violações graves aos direitos humanos relacionadas com atrocidades cometidas contra a minoria muçulmana Rohingya.

Golpe com motivações pessoais?

Há especialistas que consideram que este golpe de Estado foi, sobretudo, motivado pelas ambições pessoais do General que estará a segurar-se ao poder para evitar ser julgado internacionalmente e para defender os seus investimentos.

“Enfrentando a reforma obrigatória dentro de meses, sem caminho para um papel de liderança civil e entre apelos globais para que enfrente as acusações de Haia, [Min Aung Hlaing] estava encurralado“, explica na CNN o advogado especializado em Direitos Humanos Jared Genser, que foi conselheiro de Suu Kyi.

Oficialmente, os militares justificaram o Golpe de Estado como uma resposta a alegadas irregularidades nas eleições de Novembro de 2020, onde o partido de Suu Kyi reclamou uma vitória esmagadora por 83% dos votos.

O Partido União Solidária e Desenvolvimento, que é apoiado pelos militares, só conseguiu 33 dos 476 lugares possíveis no Parlamento do país.

Min Aung Hlaing já prometeu que haverá eleições “livres e justas” e que só depois disso é que “as responsabilidades do Estado vão ser entregues ao partido vencedor, indo ao encontro das normas e padrões da democracia”.

Suu Kyi está, novamente, detida na sua residência oficial e foi acusada pelos militares de violar as Leis de Importação e Exportação do país, de acordo com o porta-voz do seu partido, Kyi Toe.

O presidente de Myanmar, Win Myint, também está sob a custódia dos militares.

Enquanto isso, sucedem-se os apelos internacionais para a libertação de Suu Kyi e dos restantes detidos. O presidente dos EUA, Joe Biden, até ameaçou com possíveis sanções.

Contudo, a líder birmanesa está, actualmente, longe da unanimidade que tinha aquando da sua eleição como Prémio Nobel da Paz.

Filha do herói da independência da Birmânia, Suu Kyi foi celebrada em livros, em filmes e até na música pop e tornou-se num símbolo da luta pelos Direitos Humanos. Mas desde que chegou ao poder, a sua aura internacional foi manchada por decisões questionáveis.

Em Myanmar, continua a ser muito popular, sobretudo entre a maioria étnica Bamar, mas foi acusada internacionalmente de ser cúmplice dos militares na tentativa de genocídio dos Rohingya.

Futuro é um “verdadeiro mistério”

Com o país a meio de uma pandemia, é imprevisível o curso que vai tomar este golpe de Estado.

“Ninguém será capaz de controlar o que vem a seguir”, escreveu nas redes sociais o historiador birmanês Thant Myint-U, realçando que “Myanmar é um país repleto de armas, com profundas divisões entre linhas religiosas e étnicas, onde milhões mal se conseguem alimentar”.

Para o Relator Especial das Nações Unidas sobre Direitos Humanos para Myanmar, Tom Andrews, é um “verdadeiro mistério” o rumo que este golpe vai tomar, conforme declarações à CNN, onde destaca que os militares têm, neste momento, “um poder enorme”, não só político como económico.

“As pessoas de Myanmar já passaram por tanto. Viveram décadas de um regime militar brutal. Estão a atravessar uma pandemia. A economia está em má forma para muitos. É incrivelmente injusto para ter que passar por isto novamente”, destaca Tom Andrews.

E há receios de que a violência e a brutalidade cometida pelos militares durante décadas, com as prisões dos opositores e as torturas, voltem ao país.

De heroína dos direitos humanos, a cúmplice de genocídio

Após 50 anos de ditadura militar, o poder nunca saiu, verdadeiramente, das mãos dos homens das armas.

Entre 1989 e 2010, o exército manteve Suu Kyi detida em casa, na cidade de Yangon. Essa resistência pacífica contra os militares valeu-lhe o Prémio Nobel da Paz em 1991, galardão que deu visibilidade à situação de Myanmar.

Pelo meio, os militares acabaram por ceder às pressões internacionais, abrindo a porta a eleições livres no país.

Mas antes fizeram questão de mudar a Constituição, ficando com o poder de veto em certos assuntos e mantendo 25% dos lugares do Parlamento, bem como a garantia do controle de ministérios fundamentais, tais como a Defesa e a Administração Interna.

Em 2015, cinco anos depois de ter sido libertada, Suu Kyi liderou o seu partido rumo à vitória nas primeiras eleições livres depois da ditadura militar.

A Constituição aprovada pelos militares impedia Suu Kyi de ser presidente do país por ter um marido estrangeiro. Por isso, foi criado o cargo de Conselheiro de Estado, o equivalente a primeiro-ministro, que lhe permitiu tornar-se chefe do Governo.

Só que os tempos de Suu Kyi no poder não foram fáceis. Ela pegou nas rédeas de um país em clima de guerra civil, com acesas disputas étnicas e religiosas, bem como guerras pelos recursos naturais do país.

A economia não melhorou e as tensões persistiram, com os militares sempre à espreita.

Os Rohingya são o exemplo flagrante do poder militar.

Em 2017, 750 mil pessoas desta minoria fugiram para o vizinho Bangladesh, procurando escapar ao aumento da violência do exército contra eles após uma campanha de aldeias queimadas, execuções sumárias e violações.

A ONU classificou as acções militares como uma tentativa de genocídio.

E foi então que Aung San Suu Kyi passou de resistente pacifista do exército à sua maior defensora. A líder birmanesa foi ao Tribunal de Haia rejeitar as acusações de genocídio contra os militares, defendendo-os em nome de Myanmar.

Uma atitude que levou algumas entidades, incluindo a Amnistia Internacional, a retirarem-lhe prémios atribuídos pela sua defesa dos Direitos Humanos.

Mas se internacionalmente virou pária, dentro de portas ganhou ainda mais popularidade e os anteriores inimigos, os militares, tornaram-se poderosos aliados. Porque, na verdade, esteve sempre nas mãos deles.

Entre os refugiados Rohingya, a detenção de Aung San Suu Kyi começou por ser recebida como uma boa notícia. Mas a certeza de que o poder está de novo nas mãos dos militares deixa-os certos de que tão cedo não poderão voltar a casa.

Susana Valente, ZAP //

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