Obsessão pela desinfecção de tudo, perda de apetite, chorar às escondidas, cansaço geral e conflitos familiares são algumas das situações que os pais que estão em isolamento com os filhos e em teletrabalho confessam sentir na primeira semana de combate à pandemia Covid-19.
“Como éramos felizes e não o sabíamos antes de tudo isto acontecer”, desabafa João, 43 anos, pai de dois filhos, de 11 e 8 anos, marido, genro, tio, empresário, investigador e estudante universitário no Porto.
Num testemunho enviado à Lusa, e depois de terminar as tarefas em casa, João relata como é desempenhar “tantos papéis” na situação excepcional da pandemia que o obriga a “controlar” e “esconder” as “muitas emoções” que sente ao longo do isolamento social em teletrabalho.
“A batalha é dura, porque as frentes de batalha são várias. A forma como lido com as várias frentes exige uma mudança constante de abordagem. Estar perante uma situação impensável, em que me é exigido o cuidar de mim e dos outros, lutar pela vida evitando um vírus invisível, mais as pressões profissionais, o acompanhamento aos filhos nas tarefas escolares e também no seu equilíbrio emocional, apoiar toda a família, lidar e gerir a informação que entra ao minuto pelos media, é devastador a nível emocional, mental e físico”, confessa João.
Este pai refere que é nos silêncios da noite à varanda, quando a família dorme, que recupera a força e a coragem para enfrentar mais um dia de isolamento. “Acredito que vamos conseguir passar o cabo das tormentas como já o fizemos no passado, mas ficaremos com marcas desta situação vivida para sempre“, diz.
“Qualquer tosse ou espirro é um sobressalto”
Margarida, médica veterinária do Porto, três filhos com 2, 10 e 14 anos, delineou há mais de 15 dias um plano de contingência na sua casa para combater a pandemia Covid-19 e diz-se obcecada com a desinfecção de tudo, tendo perdido o apetite.
“Só hoje consegui passar um creme na cara. Não consigo comer, vivo obcecada com a higiene e desinfecção de tudo e todos. Tivemos contactos no trabalho com pessoas que poderão estar infectadas. Alguns de Ovar (concelho que está em situação de calamidade), mas ainda não sabemos. Aguardamos com ansiedade os 15 dias de espera até regressar ao trabalho. Qualquer tosse ou espirro é recebido com sobressalto”, relata.
Não poder abraçar da mesma forma os filhos e o marido e não poder estar com os pais, irmãos, sobrinhos e amigos é o mais difícil. “Não me assusta o futuro, desde que estejamos cá para o enfrentar. Havemos de sobreviver. Só tenho muito medo de perder alguém ou até de ser perdida”, confessa Margarida.
Maria, 34 anos, solteira e com uma filha de 15 anos, é agente da Polícia Municipal do Porto e “desmorona completamente” à noite na cama, depois de trabalhar em turnos diários de 12 horas e sem ajuda familiar para cuidar da adolescente, cujo pai está na Coreia do Sul.
Licenciada em criminologia pela Universidade do Porto e estudante de mestrado em Ciências Policiais, Maria confessa que “já sentiu o coração a querer sair-lhe do peito”.
“O perigo é exponencial na minha profissão e o meu receio é trazer o vírus para casa e passar para ela [a filha]”, mas como dependem as duas do seu salário, não se pode dar ao luxo de uma baixa para assistência à família.
“Chorei por sentir que não consigo fazer o suficiente”
Clotilde e o marido, ambos investigadores científicos do Porto e pais dum bebé de 14 meses e de um menino de 5 anos, estão em regime de teletrabalho em casa. Estão a dividir as tarefas domésticas e revezam-se a cuidar das crianças, mas as forças vão abaixo, porque para darem atenção aos filhos durante o dia trabalham pela noite fora.
As lágrimas caem e Clotilde assume-as sem vergonha. “Já chorei algumas vezes. De preocupação com o futuro, com a minha família daqui e a que vive no Brasil, com todo o caos mundial. Chorei por sentir que não consigo fazer o suficiente, de cansaço”, descreve.
Contudo, a força interior prevalece e Clotilde relativiza a exaustão para deixar entrar os sentimentos de esperança em dias melhores.
“Sinto-me a pior mãe do mundo”
Olga é responsável de recursos humanos no Porto, tem dois filhos, de 5 e 2 anos. Está “exausta” e “angustiada” após a primeira semana de isolamento e em teletrabalho com o marido.
“Sinto-me a pior mãe do mundo, por não conseguir guardar as emoções para mim e explodir e chorar à frente dos miúdos. Pouco tempo tenho para mim. Não consigo fazer exercício físico apesar do ginásio enviar constantemente emails com vídeos de aulas para fazer em casa, eu não consigo sequer ver um programa que goste ou pior não consigo estar cinco minutos sozinha”, confessa Olga.
Esta mãe recorda que não houve um só dia em que não tenha chorado pelo menos uma vez. “Há alturas que fico mesmo angustiada, porque está a ser muito difícil conciliar tudo e, ao mesmo tempo, manter a serenidade para que os meus filhos não fiquem com traumas depois disto tudo acabar”.
Filipe, 44 anos, divorciado, tem 4 filhos – dois do primeiro casamento e outros dois da segunda relação -, e uma empresa do sector do vestuário de Paços de Ferreira com 62 funcionárias.
Decidiu que os filhos ficavam em casa das mães, porque precisa de encontrar soluções para salvar o negócio familiar. O desespero do pai Filipe para salvar os salários das suas colaboradores obrigou-o a ir à empresa, localizada na região Norte do país, nestes últimos dias para explicar-lhes que vai lutar até ao último euro de ajudas financeiras do Estado e da União Europeia para lhes manter emprego, mas que para já tinha de suspender o negócio. “Não tenho sequer salário para este mês, porque as encomendas que seguiram para os clientes franceses já não estão a ser pagas”, conta, angustiado.
“Medo do futuro”
Júlia, 43 anos, divorciada, com uma filha adolescente de 12 anos e pais idosos para cuidar, diz que não chora, mas confessa que o seu coração se acelera de “medo do futuro”, “medo de como o mundo vai ficar depois da pandemia” e “medo dos nacionalismos, dos loucos do mundo, da guerra que virá depois e de como ficarão as pessoas”.
Para cuidar dos pais e não os colocar em perigo optou por fazer o isolamento sozinha. A filha foi para casa do pai. Reconhece que a decisão é dura, pois sabe que os afectos e o consolo da mãe são “imprescindíveis num tempo que ficará marcado para sempre na vida”.
Longe da filha, a mãe Júlia sai de casa pelas 19 horas para apoiar os pais, uma tarefa que reparte com a irmã.
Mãe de um menino de 5 anos, Ana Rita, escultora e empresária do sector turístico, com dois apartamentos de Alojamento Local no Porto, está neste momento sem trabalho e sem rendimentos, porque “todos os hóspedes cancelaram as reservas” e a escultura teve de ficar em ‘stand by‘ e está angustiada e com medo.
“Só quando ele adormece é que me permito sentir esta angústia, este receio do imprevisível, o medo que esta ameaça invisível possa derrubar algum elemento da nossa família tão unida. Temos vários familiares e amigos em situação de risco e estou com dificuldade em lidar com toda esta incerteza com positivismo. Acordo várias vezes durante a noite, com um aperto no peito, com receio do que o dia seguinte possa trazer”, relata Ana Rita.
“Pais estão em modo de sobrevivência”
Segundo a investigadora da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Cristina Queirós, a situação de isolamento social forçado em espaços confinados e os pais a lidarem com a imprevisibilidade e a mudança rápida “eleva o risco de desordens mentais“, pode “diminuir a saúde mental” e pode também “afectar a relação no casal quando vivem juntos”.
“Aumentará a depressão, ansiedade, transtornos obsessivo-compulsivos, agressividade e impulsividade e a impaciência”, descreve a especialista, alertando que muitas destas situações só se vão revelar depois de tudo melhorar, pois apesar do “desespero, alguns pais estão em modo de sobrevivência“.
“Quando acalmar, o seu corpo/mente irá dar a ordem agora já podes adoecer, porque não precisam tanto de ti. Receio bem que, quer no isolamento quer no regresso à normalidade, se verifique uma diminuição da saúde mental“, constata a especialista.
A “ansiedade, medo e confusão”, bem como a “irritabilidade e impaciência com tudo e todos por estar confinado num espaço fechado 24 horas” são alguns dos sentimentos que os pais têm de estar preparados para sentir, alerta Cristina Queirós.
“A tristeza por tudo ter mudado” a “culpa de se sentir mal e poder contaminar a família”, ” a frustração do que se perdeu”, a “revolta quando os outros não cumprem isolamento e contaminam” ou a “impotência de não poder controlar a sua vida como habitualmente” e “muito cansaço físico e emocional” são outros sentimentos que podem aparecer logo após uma semana de isolamento social em teletrabalho com os filhos.
Para o psicólogo especialista em psicologia educacional José Morgado, é importante, todavia, que no meio do ‘tsunami’ da informação sobre a pandemia e do cansaço, os pais consigam construir um “ambiente seguro” para os filhos, promovendo” rotinas positivas” e de flexibilidade, que permitam aos miúdos reconhecer a estrutura do tempo e “atenuar as rotinas negativas”, trazendo as crianças para actividades mais prazenteiras.
Os progenitores devem também estar atentos a “comportamentos disruptivos”, como os transtornos alimentares, tais como a bulimia, e verificar as causas das birras, embora seja previsível que aumentem num contexto de isolamento.
“Tirar gás às inquietações das crianças sobre a pandemia, sem esconder a verdade, mas sem dramatizar”, usando “discursos tranquilos” é outra medida para conter comportamentos negativos.
ZAP // Lusa