O pacote de alterações legislativas que o Governo timorense vai introduzir para a ratificação do Tratado de Fronteiras Marítimas com a Austrália inclui mudanças para “blindar” o Fundo Petrolífero, segundo fonte conhecedora dos projetos.
Do pacote fazem parte vários decretos-leis necessários para enquadrar os novos contratos de partilha de produção para os poços no Mar de Timor, alterações ao regime tributário e mudanças para adaptar a lei do trabalho e da migração ao setor petrolífero, informou na segunda-feira o Sapo 24, citando a agência Lusa.
Fonte do executivo envolvida na preparação dos diplomas confirmou à Lusa que o pacote legislativo foi entregue na sexta-feira ao primeiro-ministro, devendo ser debatido alargadamente em Conselho de Ministros nos dias 08 e 09 de julho.
Em causa estão decretos-leis, que depois de aprovados em Conselho de Ministros terão de ser promulgados pelo Presidente da República e outros diplomas, incluindo alterações a leis em vigor, que têm de passar pelo parlamento antes de ir ao chefe de Estado.
Trata-se de um extenso pacote legislativo que o Governo quer ver promulgado e em vigor antes do dia 30 de agosto para que nesse dia, em que se celebram os 20 anos do referendo de independência de Timor-Leste, possa ser formalmente ratificado o tratado.
Paralelamente ao processo em Timor-Leste estará a decorrer um processo legislativo necessário no parlamento australiano.
Para que essa ratificação aconteça, é necessário aprovar várias alterações a diplomas como a Lei do Fundo Petrolífero, a Lei de Atividades Petrolíferas, a Lei Tributária e a lei da Timor Gap, além de outras mudanças.
Desde a assinatura do tratado Timor-Leste tem estado a negociar com Camberra e com as operadoras com projetos no Mar de Timor para finalizar os complexos acordos de transição para o novo regime que será formalmente criado com a ratificação.
Pelo parlamento terão que passar quatro propostas de alteração a leis em vigor, uma das quais regulamenta o novo enquadramento fiscal exigido pelo facto de Timor-Leste passar a deter a jurisdição única dos poços na zona do Mar de Timor.
No que se refere à lei do Fundo Petrolífero e à Lei das Atividades Petrolíferas, fonte do executivo confirmou que se “mexe estritamente no necessário para se fazer a ratificação”, alterando por exemplo as referências a tratados anteriores e passando a incluir referências ao novo tratado de fronteiras.
No caso da lei do fundo petrolífero a alteração transpõe também “o que foi aprovado com a alteração de janeiro da Lei de Atividades Petrolíferas” para assim “articular as duas leis”, já que a mudança na Lei de Atividades Petrolíferas “mexeu indiretamente” na do fundo.
Além disso, explicou, e por preocupações de alguns setores do Governo, incluindo o Ministério das Finanças, as alterações respondem a “preocupações sobre eventuais excessivas exposições do Fundo Petrolífero ao risco”.
Nesse sentido, esclareceu a mesma fonte, “vai-se fechar, blindar o Fundo Petrolífero” de uma forma que, na prática, trava o recurso ao fundo para financiar o projeto da costa sul de Timor-Leste.
Finalmente, passará igualmente pelo Parlamento um conjunto de alterações que criarão um regime especial para o setor petrolífero no âmbito da lei do trabalho e da migração.
A lei do trabalho tem restrições, por exemplo, ao número de horas de trabalho que não se aplicam no setor petrolífero onde o trabalho é feito por empreitadas em períodos consecutivos de 28 dias, sendo necessário igualmente criar um regime de vistos para os trabalhadores dos campos petrolíferos que passam agora a estar em águas timorenses.
Em causa estão ainda “vários contratos afetados pelo novo tratado de delimitação de fronteiras”, incluindo os referentes ao projeto do Bayu Undan, e outras licenças que estão atualmente a funcionar sob o regime australiano, no limite ocidental da Zona Conjunta de Desenvolvimento Petrolífero (JPDA).
Projetos que estão “em diferentes fases” e que obrigam a ter um novo Contrato de Partilha de Produção (PSC), novos decretos do Governo e outras alterações legislativas, tanto em Timor-Leste, como na Austrália, em áreas como impostos.
Do pacote fazem parte, por isso, seis novos PSC que definem direitos e obrigações equivalentes aos concessionários das licenças de e que, por força das fronteiras definidas no tratado, passam de estar sob jurisdição conjunta ou exclusiva da Austrália e passam a estar sob jurisdição exclusiva de Timor-Leste.
Para isso foi necessário transformar documentos que tinham sido preparados com base no sistema legislativa australiano (common law) e que tiveram de ser adaptados ao regime, civilista, aplicado em Timor-Leste.
Esses PSC serão regulamentados por quatro decretos-leis que terão de ser aprovados em Conselho de Ministros e depois promulgados pelo Presidente da República.
Entre as mudanças legislativas contam-se, por exemplo, mudanças para regular o gasoduto que liga o poço de Bayu Undan a Darwin e que com o tratado passará a atravessar águas exclusivas de Timor-Leste.
Por um lado, trata-se de “terminar coisas antigas e mecanismos antigos” e introduzir novos sobre a “utilização do gasoduto”, definindo, por exemplo, que a quantidade de petróleo transportada passa a ser contada à saída do campo em vez de à entrada da refinaria em Darwin.
“Pedir o dinheiro do petróleo à Austrália é rebaixar-me ao nível deles”
Pedir o dinheiro à Austrália pelos milhões de receitas do gás e petróleo indevidamente recebidos por Camberra ao longo de anos seria como “rebaixar-me ao nível deles”, disse ao Público Xanana Gusmão, ex-Presidente (2002-07) e ex-primeiro-ministro (2007-15) de Timor-Leste, durante uma entrevista em que foram abordados vários temas, incluindo a ratificação do Tratado de Fronteiras Marítimas.
Segundo o próprio, no primeiro dia em que começou a negociação para definir a fronteira marítima, perguntaram-lhe se a Austrália devia devolver o dinheiro recebido. Ao que respondeu: “Estou aqui a representar o Estado de Timor-Leste não para mendigar dinheiro, mas para definir a fronteira marítima com a Austrália”.
Xanana Gusmão esteve em Lisboa para a conferência Fragilidade dos Estados – Recursos Naturais, Resiliência e Desenvolvimento, organizada pelo Clube de Lisboa e pelo g7+, um fórum dos Estados frágeis que reúne mais de 20 países.
De acordo com o líder timorense de 73 anos, “a Austrália e a Indonésia assinaram o acordo do Timor Gap em 1989. A invasão de Timor foi em 1975. Andámos 14 anos em guerra. Para dividirem as receitas 50%-50% com a Indonésia, os australianos tiveram de mostrar uma política de conivência com o morticínio em Timor”.
“Se vamos olhar só para o dinheiro e não para a política suja e a falta de moral da Austrália – foram o único país que reconheceu a invasão – o que é que vamos fazer? Fui a Nova Iorque e a Genebra explicar porque é que fechámos a porta ao Tribunal Penal Internacional. Porque não aceito que os generais indonésios vão lá responder”, referiu.
E continuou: “Dois congressistas americanos colocaram-me o problema e eu disse: “Muito bem. Querem assinar um acordo comigo? É simples: eu levo os generais e fico à vossa espera no Tribunal Internacional. E vocês levam todos os que na América venderem armas e aviões aos generais indonésios para nos matarem. E da Austrália, da França, da Alemanha, da Grã-Bretanha… tragam todos os cúmplices. Encontramo-nos lá”.
“O que aconteceu? Fugiram. Não vou medir os milhões do petróleo com a cumplicidade na morte de 200 mil timorenses. Seria baixar-me ao nível deles: eles deixaram-nos matar pelos indonésios por causa do dinheiro. Eu pedir esse dinheiro é rebaixar-me ao nível deles”, acrescentou o líder timorense, que esteve preso sete anos numa cadeia indonésia durante a ocupação.