A desafiante descoberta, pela missão Rosetta da ESA, de vários isótopos de gás nobre xénon no Cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko estabeleceu o primeiro elo quantitativo entre o cometa e a atmosfera da Terra.
A mistura de xénon encontrada no cometa é muito parecida com o U-xénon, a mistura primordial que os cientistas acreditam ter sido trazida para a Terra durante os estágios iniciais da formação do Sistema Solar.
Essas medições sugerem que os cometas contribuíram com cerca de 20% da quantidade de xénon na antiga atmosfera da Terra.
O Xénon, um gás incolor e inodoro que compõe menos de um bilionésimo do volume da atmosfera da Terra, pode conter a chave para responder a uma pergunta de longa data sobre os cometas: contribuíram estes para a transferência de material para o nosso planeta quando o Sistema Solar estava a tomar forma, há cerca de 4,6 mil milhões de anos atrás? E, em caso afirmativo, quanto?
O gás nobre xénon é formado numa variedade de processos estelares, desde as fases tardias de estrelas de massa baixa e intermédia, até explosões de supernovas, e até fusões de estrelas de neutrões. Cada um desses fenómenos dá origem a diferentes isótopos do elemento.
Como um gás nobre, o xénon não interage com outras espécies químicas e, portanto, é um importante vestígio do material a partir do qual o Sol e os planetas se originaram e que, por sua vez, deriva de gerações de estrelas anteriores.
“O xénon é o gás nobre estável mais pesado e, talvez, o mais importante por causa dos seus muitos isótopos que se originam em diferentes processos estelares: cada um fornece uma informação adicional sobre as nossas origens cósmicas”, diz Bernard Marty, astrónomo da CRPG-CNRS e da Universidade de Lorraine, França.
Bernard é o principal autor de um artigo que relata a descoberta de xénon pela sonda Rosetta no Cometa 67P/C-G, que foi publicado a semana passada na revista Science.
É por causa desta “impressão digital” especial que os cientistas têm usado o xénon para investigar a composição do Sistema Solar inicial, que fornece pistas importantes para compelir a sua formação.
Ao longo das últimas décadas, os cientistas recolheram amostras da abundância relativa dos seus vários isótopos em diferentes locais: na atmosfera da Terra e de Marte, nos meteoritos provenientes de asteroides, em Júpiter e no vento solar – o fluxo de partículas carregadas que fluem do Sol.
A mistura de xénon presente na atmosfera do nosso planeta contém uma maior abundância de isótopos mais pesados em relação aos mais leves; no entanto, isto resulta de o facto de os elementos mais leves escaparem mais facilmente da atração gravitacional da Terra e sendo perdidos para o espaço em maiores quantidades.
Ao corrigir a composição atmosférica do xénon para esse efeito desenfreado, os cientistas na década de 1970 calcularam a composição da mistura primordial deste gás nobre, conhecido como U-xénon, que já estava presente na Terra.
Este U-xénon continha uma mistura de isótopos leves similar à dos asteroides e do vento solar, mas incluiu quantidades significativamente menores dos isótopos mais pesados.
“Por estas razões, há muito que suspeitamos que o xénon na atmosfera inicial da Terra poderia ter uma origem diferente da mistura média deste gás nobre encontrado no Sistema Solar”, diz Bernard.
Uma das explicações é que o xénon no Sistema Solar deriva diretamente da nuvem protossolar, uma massa de gás e poeira que deu origem ao Sol e aos planetas, enquanto o xénon encontrado na atmosfera terrestre foi entregue num estágio posterior por cometas que, por sua vez, se podem ter formado a partir de uma mistura de material diferente.
Com a visita da missão Rosetta da ESA ao Cometa 67P/Churyumov-Gerasimenko, um fóssil gelado do Sistema Solar inicial, os cientistas poderiam finalmente reunir os dados, há muito procurados, para testar essa hipótese.
“A pesquisa de xénon no cometa foi uma das medições mais cruciais e desafiadoras que realizamos com a Rosetta”, diz Kathrin Altwegg, da Universidade de Berna, Suíça, investigadora principal do ROSINA, o Espectrómetro da Sonda Rosetta para Análise de Iões e Neutrões, que foi utilizado para este estudo.
O xénon é muito difuso na atmosfera fina do cometa, então a equipa de navegação teve que voar a Rosetta muito perto – entre 5 a 8 km da superfície do núcleo – por um período de três semanas, para que o ROSINA pudesse obter uma deteção significativa de todos os isótopos relevantes.
Voar tão perto do cometa foi extremamente difícil, por causa da grande quantidade de poeira que se levantava à superfície na altura, o que poderia confundir os rastreadores de estrelas que eram usados para orientar a nave espacial.
A equipa da Rosetta decidiu então realizar esta operação na segunda metade de maio de 2016. Esse período foi escolhido como um meio-termo, de modo que tivesse passado o tempo suficiente após o periélio do cometa, em agosto de 2015, e para que a atividade do pó fosse menos intensa, mas não demasiado de modo que a atmosfera fosse excessivamente fina e a presença de xénon difícil de detetar.
Como resultado das observações, o ROSINA identificou sete isótopos de xénon, bem como vários isótopos de outro gás nobre, o crípton; elevando assim para três o inventário de gases nobres encontrados no cometa da Rosetta, após a descoberta de árgon, a partir de medições realizadas no final de 2014.
“Estas medições exigiram um longo período dedicado exclusivamente para o ROSINA, e teria sido muito dececionante se não tivéssemos detetado xénon no Cometa 67P/CG, por isso, fico feliz por termos conseguido detetar tantos isótopos,” acrescenta Kathrin.
Uma análise mais aprofundada dos dados revelou que a mistura de xénon no Cometa 67P/C-G, que contém quantidades maiores de isótopos leves do que pesados, é bastante diferente da mistura média encontrada no Sistema Solar. Uma comparação com a amostra de calibração a bordo confirmou que o xénon detetado no cometa também é diferente da mistura atual na atmosfera da Terra.
Em contraste, a composição do xénon detetada no cometa parece estar mais próxima da composição que os cientistas pensam estar presente na atmosfera inicial da Terra. “Este é um resultado muito emocionante, porque é a primeira descoberta de um candidato para a hipótese do U-xénon”, explica Bernard.
“Há algumas discrepâncias entre as duas composições, que indicam que o xénon primordial fornecido ao nosso planeta, poderia derivar de uma combinação de cometas e asteroides impactantes.”
Em particular, Bernard e seus colegas conseguiram estabelecer o primeiro elo quantitativo entre os cometas e a camada gasosa do planeta: com base nas medições da Rosetta no Cometa 67P/CG, 22 por cento do xénon, outrora presente na atmosfera da Terra, pode ser originário de cometas – o resto terá sido fornecido por asteroides.
Este resultado não está em contradição com as medições isotópicas da água no cometa da Rosetta, que eram significativamente diferentes daquelas encontradas na Terra.
De facto, considerando os vestígios de xénon na atmosfera da Terra e a quantidade de água muito maior nos oceanos, os cometas poderiam ter contribuído para o xénon atmosférico sem ter um impacto significativo na composição da água nos oceanos.
A contribuição deduzida das medições de xénon, por outro lado, concorda com a ideia de que os cometas tenham sido transportadores significativos de material pré-biótico – como o fósforo e o aminoácido glicina, que também foram detetados pela Rosetta no cometa – que era crucial para o aparecimento da vida na Terra.
Finalmente, a diferença entre a mistura de xénon encontrado no cometa – que foi incorporado no núcleo no momento da sua formação – e o xénon observado por todo o Sistema Solar indica que a nuvem protossolar, a partir da qual o Sol, os planetas e pequenos corpos nasceram, era um lugar bastante heterogéneo em termos da sua composição química.
“Esta conclusão está de acordo com medições anteriores realizadas pela Rosetta, incluindo as deteções inesperadas de oxigénio molecular (O2) e di-enxofre (S2), e a alta relação deutério-hidrogénio observada na água do cometa”, acrescenta Kathrin.
A evidência adicional da natureza não homogénea da nuvem protossolar veio também de um outro estudo baseado em observações do ROSINA, publicado em maio na Astronomy & Astrophysics, e que revelou que a mistura de isótopos de silício observados no cometa é diferente daquela medida noutro local no Solar Sistema.
“Como antecipámos no ano passado, agora que as operações da missão acabaram, as equipas podem concentrar-se na ciência”, diz Matt Taylor, Cientista do Projeto Rosetta.
“A análise detalhada realizada neste trabalho, com base em operações especialmente desenhadas, aborda um dos principais objetivos científicos da missão: encontrar pistas quantitativas que se vinculem à formação e evolução precoce do nosso planeta e do Sistema Solar”, conclui o cientista.
// CCVAlg