“Exército” de youtubers e a filha de Kim. A estratégia da Coreia do Norte para conquistar o mundo

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KCNA / EPA

A filha de Kim Jong-Un, Kim Ju Ae, ao lado do pai durante uma parada militar na Coreia do Norte.

A filha de Kim Jong-Un, Kim Ju Ae, ao lado do pai durante uma parada militar na Coreia do Norte.

As fotos da filha de Kim Jong-Un, o ditador da Coreia do Norte, fizeram sucesso nos últimos dias. O mundo viu na menina de 10 anos e no seu súbito mediatismo uma potencial sucessora como “Grande Líder” do país. Mas pode ser antes uma nova estratégia de propaganda para “vender” uma outra Coreia ao mundo.

Kim Ju Ae que terá 9 ou 10 anos, é uma versão “mini” de Kim Jong-Un. Mas durante a maior parte da sua vida quase não existiu, nunca aparecendo ao lado do pai. Ora, nos últimos três meses, a menina fez cinco presenças públicas, segundo contas da BBC.

A criança apareceu em lugar de destaque na parada militar que assinalou o 75º aniversário da fundação do exército da Coreia do Norte, e foi também figura central num jantar com altos funcionários do país.

Este gesto de colocar “os holofotes na criança” pode ser uma forma de “humanizar” Kim Jong-Un enquanto vai “distraindo os observadores internacionais das ameaças nucleares da Coreia do Norte e dos abusos dos direitos humanos”, como analisa o professor Leif-Eric Easley da Universidade Ewha em Seul, na Coreia do Sul, em declarações ao The Daily Beast.

“Foi a primeira vez na história da Coreia do Norte que a filha de um líder se sentou rodeada por tão altas elites militares”, nota o investigador Cho Han-bum do Instituto da Coreia para a Unificação Nacional em declarações à Vice World News.

Há quem veja nisso uma “jogada política” de Kim para começar a legitimar a filha como a próxima “Grande Líder”, como repara Cho.

Mas o professor Edward Howell da New College da Universidade de Oxford acredita antes que Kim quer mostrar que é “um líder paternal e maternal numa altura em que a Coreia do Norte continua a enfrentar problemas económicos domésticos“, conforme diz à Vice.

Portanto, a filha dá a Kim a oportunidade de se mostrar um pai dedicado e afectuoso, princípios perfeitos para um “Grande Líder”. Enquanto isso, revela ao mundo uma outra face com que qualquer cidadão se pode relacionar.

“Ver é crer”, diz youtuber norte-coreana num Inglês perfeito

Nos últimos dois anos, começaram a surgir várias contas de norte-coreanos nas redes sociais, sobretudo em plataformas chinesas como Weibo e Bilibili, onde partilham as suas vidas online, mostrando o país como uma nação quase idílica.

É esse o caso do canal do YouTube de YuMi, ou Olivia Natasha, o seu alter-ego em Inglês. Esta jovem mostra-se, por exemplo, a fazer exercícios num ginásio em Pyongyang enquanto vai falando num Inglês quase perfeito.

YuMi também mostra a Caverna Ryongmun, ou “a mais misteriosa caverna da Coreia” que é uma construção natural que se formou “há 480 milhões de anos”, como refere.

Além disso, podemos vê-la a visitar um parque de diversões, enquanto vai explicando, também em Inglês, que as pessoas podem estar intrigadas quanto ao modo como os coreanos passam o seu tempo livre.

“Ver é crer”, nota, referindo que é um antigo provérbio coreano e que “ver por nós próprios é melhor do que ouvir as palavras dos outros”.

Os vídeos de YuMi “parecem uma peça bem preparada” com um argumento do governo norte-coreano, como analisa o investigador Park Seong-cheol do Centro de Banco de Dados dos Direitos Humanos para a Coreia do Norte em declarações à CNN.

Criança de 11 anos mostra a “cidade magnífica” de Pyongyang

Song A, de apenas 11 anos, é outra youtuber que se apresenta nos mesmos moldes de YuMi, falando num perfeito Inglês de sotaque britânico.

Esta menina tem também o seu alter-ego, neste caso Sally Parks, e diz que vive em Pyongyang, uma “cidade magnífica e muito bonita”. O seu objetivo é “mostrar locais divertidos e interessantes” da cidade, como sublinha no seu canal no YouTube.

Entre os vídeos de Song A, podemos vê-la a visitar uma loja de gelados com a melhor amiga.

A criança também exibe as suas aulas de dança, a ida a complexo científico-tecnológico e a um parque aquático, entre outras atividades semelhantes.

Em Agosto de 2022, Song A também partilhou um vídeo com o seu “primeiro dia de escola sem máscara” depois das férias do Verão. Ela vai também lamentando os “dois anos e meio com máscaras”, o que contraria a narrativa norte-coreana que insistiu em negar a existência da covid-19 no país.

Ganhar a simpatia mundial

Estas imagens são surpreendentes num país que vive fechado em si mesmo e onde livros e filmes estrangeiros são banidos.

Se pensarmos que a liberdade de expressão é reprimida e que o próprio acesso à Internet é muito limitado, fica óbvio que são imagens “manipuladas” pela máquina de propaganda oficial da Coreia do Norte.

É evidente que YuMi e Song A não são norte-coreanas comuns. É possível que sejam próximas de altos funcionários da Coreia do Norte, dando voz e rosto a uma narrativa “cor-de-rosa” que visa mudar a imagem internacional do país.

É uma nova estratégia de “relacionabilidade” de modo a ganhar a simpatia mundial e a pôr para debaixo do tapete a conversa sobre a ameaça nuclear.

“A Coreia do Norte está a esforçar-se para enfatizar que Pyongyang é uma ‘cidade comum’“, nota Park Seong-cheol na CNN, acrescentando que o líder do país está “muito interessado em como o mundo exterior os vê”.

A ideia é também passar a imagem de um país seguro para encorajar o turismo e recuperar a economia depois da devastação provocada pela pandemia de covid-19, acredita aquele investigador.

Antes da pandemia, só havia ofertas turísticas muito limitadas, com os estrangeiros a serem guiados por elementos do Ministério do Turismo apenas pelos locais autorizados.

De resto, na Coreia do Norte, locais como os parques de diversões visitados por YuMi e Song A não estão abertos aos cidadãos comuns, mas apenas a “pessoas especiais de uma classe especial” e só durante certos períodos, nota ainda Park Seong-cheol.

E “o fornecimento de energia na Coreia do Norte não é bom o suficiente para operar um parque de diversões”, acrescenta o investigador, recordando que os apagões eléctricos são comuns no país.

Só 26% da população tem acesso a electricidade, segundo estimativas de 2019 da CIA World Factbook citadas pela CNN.

Assim, esta aposta em youtubers que falam um Inglês perfeito visa atrair a atenção global, mas também é uma forma de fugir à política de “cancelamento” do YouTube que tem bloqueado vários canais oficiais da Coreia do Norte por “violação dos termos de serviço”.

E apesar do seu lado falso e de propaganda, estes vídeos podem ajudar a ver a Coreia do Norte para lá do que o país tanto esconde.

Susana Valente, ZAP //

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