Vírus ancestral pode estar a proteger a placenta humana

Klaus Boller

O patógeno que se incorporou no nosso genoma há milhões de anos pode mesmo afastar outros invasores virais.

Há cerca de 30 milhões de anos, um vírus infetou os nossos antepassados primatas e um dos seus genes ficou preso nos seus genomas. Com o tempo, este gene viral tornou-se “domesticado” — e territorial.

Ajudou os primatas a lutar contra outros vírus, impedindo-os de atacar as células. O invasor — conhecido como Suppressyn (SUPYN) — ainda hoje existe, e continua a ajudar-nos. Um novo estudo publicado a 27 de outubro na revista Science revela que pode ajudar a placenta a proteger os embriões da infeção viral.

“É uma boa história apoiada por experiências muito fortes”, afirma Giulia Pasquesi, bióloga da Universidade do Colorado, que não esteve envolvida no estudo.

Encontrar mais genes virais, de acordo com a investigadora, pode ajudar-nos a aproveitar ou aumentar as nossas propriedades antivirais inerentes sem a necessidade de desenvolver novos medicamentos ou vacinas. “Existem todos estes elementos que já temos no nosso genoma”.

Os vírus que incorporam o nosso material genético são conhecidos como retrovírus. O VIH é provavelmente o exemplo mais famoso. Se infetarem espermatozoides ou oócitos, os precursores dos óvulos, os seus genes tornam-se parte do nosso ADN e podem ser transmitidos à nossa descendência.

Quando um fragmento de ADN viral se torna incorporado no nosso genoma, é conhecido como um retrovírus endógeno (ERV). Cerca de 8% do genoma humano consiste em sequências ERV que têm estado presas no nosso ADN desde que infetaram um antepassado humano há milhões de anos. Estes genes perderam a sua função viral original ao longo do tempo, mas isso não significa que sejam inúteis.

Para descobrir quais os ERV que ainda podem estar ativos no corpo humano, o biólogo molecular Cedric Feschotte da Universidade de Cornell e os restantes investigadores analisaram o genoma humano, em busca de sequências ERV que suspeitavam ser capazes de codificar proteínas. Encontraram 1.507 sequências, cerca de metade das quais pareciam estar a fazer algo nos tecidos humanos.

Um ERV chamado Suppressyn (SUPYN) apareceu num gene humano, e consegue codificar uma proteína produzida na placenta e em embriões humanos primitivos.

SUPYN liga-se a um recetor em superfícies celulares conhecido como ASCT2 — o mesmo recetor que outra proteína derivada de ERV chamada Syncytin utiliza para formar ligações entre células.

Na sua vida anterior como retrovírus, Syncytin podia fundir-se com membranas celulares para entrar nas células. Já a sua forma moderna permite-lhe a formação da placenta durante o desenvolvimento fetal através da fusão de células.

A evolução da placenta pode não ter sido possível sem ela. “Poder-se-ia argumentar que sem retrovírus não se teriam mamíferos”, nota Welkin Johnson, virologista do Boston College. “É quase como se a vida não tivesse evoluído como evoluiu”.

Mas o ASCT2 é também um calcanhar de Aquiles para os mamíferos. Os vírus chamados retrovírus tipo D é utilizado pelos mamíferos para contornar as defesas celulares para se infiltrarem nas células e causar uma variedade de doenças em muitos animais, incluindo primatas não humanos. — ma nenhuma é conhecida por infetar seres humanos, segundo avança a Science.

Feschotte sublinha que isto terá representado um grande desafio para os primeiros animais, se estes não tivessem uma forma de se protegerem contra os retrovírus.

Salvaguardar a placenta seria particularmente importante, uma vez que os retrovírus que infetaram um embrião suficientemente cedo no desenvolvimento poderiam entrar em espermatozoides e óvulos.

Quando a equipa de investigação infetou as células placentárias humanas com retrovírus, descobriram que SUPYN competia contra os agentes patogénicos ao bloquear os recetores ASCT2, tornando impossível a entrada de vírus nas células.

As células pareciam ligar o SUPYN quando detetavam um vírus, sugerindo que este codifica uma proteína antiviral, segundo relatam os investigadores.

Johnson realça que não é claro se o SUPYN bloqueia realmente qualquer vírus nas pessoas. Embora os retrovírus tipo D possam infetar os macacos e outros primatas, nenhum deles parece infetar os seres humanos. Os autores “têm os meios e o motivo; o problema é a oportunidade”, explica. “É tudo culpa por associação“.

Ainda assim, Johnson elogia o estudo e admite que é possível que SUPYN tenha evoluído para bloquear um vírus que está agora extinto, ou talvez seja tão bom no seu trabalho que impede que os vírus inimigos ganhem alguma sequer alguma posição.

Pasquesi acrescenta que é impressionante que os autores tenham conseguido descobrir qual o recetor que estes retrovírus estavam a utilizar para entrar nas células.

A investigadora está atualmente a trabalhar num estudo semelhante de mapeamento de ERV no genoma humano e encontrou cerca de 30 que parecem ser importantes para o sistema imunitário humano. “É espantoso como o nosso próprio corpo faz todos esses pequenos antivirais”, salienta.

A equipa de Feschotte planeia agora trabalhar com dezenas de outros retrovírus ativos que identificaram. Os investigadores afirmam que embora Suppressyn seja reconhecido como um gene humano funcional, 99% dos outros ERV ativos parecem apenas ADN não importante — mas a aparência pode ser enganadora.

“Há este tesouro de potenciais proteínas”, sublinha Feschotte, acrescentando que “há pelo menos o potencial que estes tesouros tenham atividades interessantes para a medicina, fisiologia ou desenvolvimento“.

Alice Carqueja, ZAP //

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