De uma utopia a um pesadelo. A cidade indiana sem políticos e sem dinheiro

Fundada para ser um exemplo utópico de uma comunidade espiritual, o futuro de Auroville é cada vez mais incerto mediante o envolvimento do Governo de Modi, que tem ameaçado a autonomia da pequena cidade.

No coração do sul da Índia, encontra-se Auroville, uma cidade utópica concebida como um santuário de paz e harmonia espiritual. No entanto, nos últimos três anos, a cidade foi dilacerada por divisões internas, batalhas legais e um confronto entre os residentes e uma administração determinada a acelerar o desenvolvimento.

Fundada em 1968 pela líder espiritual francesa Mirra Alfassa, conhecida como “Mãe”, Auroville pretendia ser um lugar onde a humanidade pudesse transcender as fronteiras nacionais, viver em harmonia e abraçar a espiritualidade. O sonho de Alfassa atraiu pioneiros de todo o mundo, desejosos de criar um mundo ideal baseado na igualdade e na partilha de recursos.

A cidade funciona sem sistemas monetários tradicionais – não há salários, impostos ou propriedade. Os cerca de 3300 residentes oriundos de 59 países contribuem com o seu tempo e recursos para o coletivo, mantendo uma sociedade experimental livre dos constrangimentos do capitalismo.

Auroville foi concebida como uma comunidade ideal, com o apoio da UNESCO e projectos do arquiteto Roger Anger, cujas plantas incluíam espirais de jardins e edifícios à volta de um grande salão de meditação, o Matrimandir. Esta cúpula geodésica, coberta de ouro e representando a aspiração espiritual, tornou-se o coração da comunidade.

Os princípios fundadores da cidade rejeitavam o materialismo e centravam-se na criação de um local de “educação sem fim” e de uma encarnação viva da unidade humana. Os residentes construíram as suas casas à mão, determinados a escapar ao consumismo da sociedade ocidental.

Atualmente, Auroville é um testemunho da sustentabilidade, com agricultura biológica, energia renovável e uma floresta evoluída que sustenta o abastecimento de água na região.

Utopia sob ameaça

No entanto, o idealismo de Auroville está agora a ser posto à prova. Uma reunião secreta realizada numa casa remota reuniu recentemente um grupo de residentes preocupados. Estes manifestaram a sua profunda preocupação com o estado atual da cidade, falando em voz baixa, receando represálias das autoridades. “O nosso sonho está a ser destruído”, comentou um dos anfitriões ao Le Monde.

No centro da disputa está a construção da Crown Road, uma ampla avenida que corta o oásis verde de Auroville. Desde 2021, centenas de árvores plantadas pelos pioneiros foram abatidas para dar lugar a estradas e infra-estruturas, uma medida que provocou a indignação dos residentes de longa data da cidade. Para eles, o corte de árvores simboliza uma traição mais ampla dos ideais de Auroville por uma administração mais interessada na expansão rápida do que na preservação do espírito utópico da cidade.

O envolvimento da administração Modi

Em julho de 2021, o governo indiano nomeou Jayanti Ravi, uma antiga funcionária pública de Gujarat, como secretária da Fundação Auroville. Encarregada de concretizar a visão original de Alfassa de uma cidade com 50.000 habitantes, Ravi alinhou-se imediatamente com um pequeno grupo de residentes frustrados com o ritmo lento do desenvolvimento.

Sob a sua liderança, a estrutura de governação de Auroville foi alterada, dando ao seu gabinete um controlo sem precedentes, desde as autorizações de residência até às decisões sobre os terrenos.

Esta mudança de poder conduziu a tensões crescentes entre os residentes e a administração. As decisões que antes eram tomadas coletivamente pela assembleia de moradores estão agora centralizadas, corroendo a tradição de governação mútua da cidade.

Para muitos, esta mudança representa uma luta ideológica que vai para além do planeamento urbano. A comunidade internacional de Auroville, que há muito defende a espiritualidade livre e a vida em comunidade, está em desacordo com a agenda nacionalista hindu do Partido Bharatiya Janata (BJP), no poder. O BJP, liderado pelo primeiro-ministro Narendra Modi, defende a supremacia hindu e desconfia dos valores multiculturais e não hierárquicos de Auroville.

Apesar dos desenvolvimentos em curso, muitos Aurovilianos mantêm-se firmes. Philippe, um residente de Auroville há 30 anos, acredita que a situação atual equivale a nada menos que um golpe. “A destruição das árvores e a construção da estrada são apenas sintomas”, diz, lamentando a abordagem autoritária.

A divisão no seio da comunidade é profunda. De um lado estão aqueles que acreditam que Auroville precisa de evoluir e expandir-se, com infra-estruturas mais modernas para acomodar o crescimento futuro. Do outro lado estão os residentes que sentem que os planos da administração são uma traição à visão de Alfassa.

Um futuro incerto

Um dos desafios que Auroville enfrenta é o envelhecimento da sua população. A cidade, espalhada por 20 quilómetros quadrados, assemelha-se mais a uma aldeia, com uma cintura verde e quintas a rodear as suas zonas centrais.

Embora a primeira geração de pioneiros e os seus filhos tenham moldado o ambiente único de Auroville, a comunidade tem-se esforçado por atrair residentes mais jovens nos últimos anos. Tornar-se residente requer recursos financeiros significativos e o complexo modelo de governação da cidade e os longos processos de tomada de decisão têm dissuadido alguns potenciais recém-chegados.

Histórias de violência local, exploração da mão de obra tâmil e casos não resolvidos de agressão sexual também abalaram a reputação da cidade.

A situação atual de Auroville reflete as lutas que enfrentou pouco depois da morte de Alfassa, em 1973, quando o ashram de Pondicherry tentou assumir o controlo da cidade. O Supremo Tribunal indiano acabou por decidir a favor dos residentes de Auroville, concedendo à cidade autonomia ao abrigo de uma estrutura de governação única. Mas hoje, essa mesma estrutura está a ser desmantelada, levantando questões sobre se Auroville pode sobreviver na sua forma atual.

Adriana Peixoto, ZAP //

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