Uma cidade anárquica de hippies está em guerra com traficantes que lhe “roubaram” a canábis

A maior comuna hippie da Europa conseguiu há muito a independência que procurava. Hoje, é ameaçada pela presença de gangues rivais que tomaram controlo do tráfico de marijuana.

Esta segunda-feira, mais um apelo desesperado chegou aos ouvidos das centenas de milhares de turistas que passam diariamente pelos bairros da Cidade Livre da Christiania: “fiquem longe e abstenham-se de comprar erva ou outras drogas na rua de Pusher Street”, implorou a presidente da câmara de Copenhaga.

A rua tornou-se uma atração turística por ser o ponto principal de venda de canábis da anárquica comuna da capital da Dinamarca, onde a violência pelo controlo de tráfico tem aumentado drasticamente.

Mas nem sempre a violência reinou no local. Há mais de 50 anos, Christiania tornava-se na maior comuna hippie da Europa no centro da capital dinamarquesa, governada por leis próprias e onde a polícia não era bem-vinda e reinava o comércio de canábis.

Uma Cidade Livre nasce numa área militar

Ocupada em 1971 por milhares de hippies, anarquistas e artistas — que exigiam menos influência governamental, a legalização da canábis e até a extinção da polícia — Christiania nascia de uma área militar abandonada pelo Governo na década de 1960.

Em resposta à crise habitacional e aos crescentes ideais capitalistas, este “exército” comunitário inspirado pelo movimento estudantil de Paris cortava o acesso a estradas e bania a presença de carros, reclamando um espaço verde e aberto com vista um futuro livre.

Imprimiram o seu dinheiro, escreveram as suas leis, acabaram com o conceito de propriedade e… legalizaram as drogas. O nome do seu primeiro bar? Woodstock.

As regras pareciam ser muito simples: tudo era permitido até incomodar alguém. Após pressão das autoridades, centenas de pessoas reforçaram que não queriam sair… e o Governo cedeu.

A Lei da Christiania nascia em 1989 por maioria absoluta no Parlamento e legalizava — como parte de uma espécie de “experiência social” — a própria invasão do local, a independência dos serviços comunitários e a aplicação de uma justiça local independente.

E assim se formava uma comunidade independente no bairro de Christianshavn — dentro da Dinamarca mas totalmente fora da sua lei.

Violência e crime, atraídos pela liberdade

Em 2011, o Governo dinamarquês colocou um ponto final no conto de fadas dos residentes: ou compravam a terra que ocuparam ou ela seria comprada. Uma angariação de fundos conseguiu o suficiente para comprar Christiania, que tem sido “governada” por uma fundação desde então.

Novas regras — especialmente dirigidas ao combate da violência entre gangues — foram sendo impostas por falta de controlo. Drogas pesadas foram proibidas, enquanto a marijuana e haxixe permaneceram legais.

@yoldaprojesi/Twitter

Cabana abandonada, no Norte de Christiania

Símbolo da tolerância e independência dinamarquesa, a Cidade Livre tornou-se o refúgio dos anti-sistema nos últimos 50 anos, mas o fácil e livre acesso a drogas atraiu violência e crime, que hoje reina no lugar dos hippies.

Cenário tornou-se “profundamente preocupante”

Cerca de 850 pessoas, entre as quais 150 crianças, habitam hoje a área, manchada pela crescente luta pelo monopólio do tráfico de marijuana que opõe os gangues Hells Angels e Loyal to Familia.

Estes gangues têm tomado controlo do tráfico de marijuana nos últimos anos, empurrando os residentes para fora deste mapa lucrativo. Hoje, grande parte das bancas de droga de Pusher Street pertencem aos dois rivais, mas também aos bikers Satudarah e Bandidos. Em 2016, o negócio de droga na rua fazia cerca de 150 milhões de dólares (138 milhões de euros) por ano, segundo o Insider.

“A espiral de violência em Christiania é profundamente preocupante“, avisou a presidente da Câmara de Copenhaga Sophie Hæstorp Andersen, segundo a AP.

“A violência e crime na Pusher Street chegou agora a um nível com o qual nós não conseguimos nem queremos lidar“, acrescentou em entrevista ao jornal Ekstra Bladet.

No passado dia 26 de agosto, um homem de 30 anos foi morto a tiro e quatro foram feridos após mais uma batalha pelo território entre os dois gangues. Múltiplos indivíduos envolvidos no tráfico de Pusher Street foram mortos.

A líder dos “anarquistas com regras” Hulda Mader tem-se queixado do aumento de esfaqueamentos e assassinatos, num cenário em que crescem as ameaças de morte dirigidas à população — hoje composta não só por quem invadiu o local, mas também por famílias que vêm o local como “ótimo para crianças”.

“Tememos que a situação desenvolva uma guerra entre gangues na Christiania. Isentámo-nos de responsabilidade pelo que acontece na Pusher Street”, disse, segundo o The Guardian.

Agora, um grupo de residentes fartou-se da violência e, colocando a sua segurança em risco, está a “declarar guerra” contra estes gangues que tomaram controlo da circulação de canábis. O grande objetivo da operação clandestina é mesmo fechar a famosa Pusher Street.

Comunidade em guerra com o tráfico

Ao chegarem ao local de venda habitual, os traficantes têm-se deparado com grandes paredes de cimento e contentores a bloquear as entradas da rua. Tudo é removido por homens mascarados que se pensa estarem associados aos gangues locais.

“Somos pessoas normais que têm de ir trabalhar e fazer a lancheira para os nossos filhos”, diz uma habitante ao The Wall Street Journal.

O plano da comunidade liderada por Mader passa agora por envolver a polícia, o município de Copenhaga e a fundação da comunidade numa união de esforços anti-gangues.

A polícia tem aumentado a sua atividade na área desde a chegada dos gangues. De acordo com o The Local, 875 pessoas foram presas por vender canábis de janeiro a novembro de 2022, um número recorde dos últimos quatro anos — números que refletem o crescente aperto à liberdade do tráfico.

A maioria dos detidos vêm de cenários marginalizados, segundo a polícia de Copenhaga. Muitos são menores, explorados pelos gangues.

Não há ainda qualquer solução planeada para combater o tráfico de droga na Cidade Livre, que se um dia forçou o seu distanciamento do resto do mundo, hoje precisa da sua ajuda para impedir o pior.

Tomás Guimarães, ZAP //

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