O “Super Mario” Draghi ficou sem vidas e Itália mergulhou numa crise política. O que se passa?

O Movimento 5 Estrelas tirou o tapete a Draghi e despoletou uma crise política em Itália, com o primeiro-ministro a anunciar que se quer demitir. Apesar de o Presidente ter segurado Draghi, o mais provável é que o líder do Governo esteja mesmo de saída.

Pouco mais de um ano depois de Giuseppe Conte ter caído após a perda de apoio de Matteo Renzi, a Itália está novamente envolta numa crise política, desta vez tendo sido o próprio Conte a tirar o tapete a Mario Draghi.

Desde Fevereiro de 2021 que Draghi, o ex-governador do Banco Central Europeu conhecido como “Super Mario” em Itália, chefia um Governo italiano que se assemelha a um complexo puzzle por que juntar forças políticas desde a esquerda até à extrema-direita.

Até agora, todos os desentendimentos têm sido resolvidos com negociações e o primeiro-ministro tem conseguido assegurar a estabilidade política no país. Mas esta semana, é caso para dizer que o “Super Mario” ficou sem vidas após Conte lhe ter tirado o tapete e anunciado que o Movimento 5 Estrelas (M5S) vai deixar de apoiar o Governo de unidade nacional — que conta ainda com o Partido Democrático, o Força Itália, o Itália Viva, o Livres e Iguais e a Liga.

O Cinco Estrelas decidiu assim abster-se na moção de confiança ao primeiro-ministro. Apesar da moção ter sido aprovada na mesma, Draghi entendeu que não tinha condições para continuar no cargo e demitiu-se.

“A coligação de unidade nacional que apoiou este Governo já não existe. Desde a minha tomada de posse que sempre disse que este executivo só iria em frente se houvesse uma perspetiva clara de poder levar a cabo o programa de governo que as forças políticas aprovaram”, justificou o primeiro-ministro.

Draghi já tinha deixado claro que não ia governar sem o apoio do M5S, que é a maior fatia da coligação. “Nos últimos dias tem havido, da minha parte, o maior empenho em continuar a trilhar um caminho comum, tentando também satisfazer as necessidades que me têm sido apresentadas pelas forças políticas. Como ficou evidente no debate e votação de hoje no Parlamento, este esforço não foi suficiente”, lamentou.

No entanto, o Presidente Sergio Mattarella — que foi precisamente quem nomeou Draghi em 2021 para chefiar o Governo na esperança de que este trouxesse estabilidade ao país e chefiasse a recuperação da pandemia — não aceitou o pedido de demissão de Draghi. Mas apesar desta recusa, o clima de crise já se instalou.

Na próxima quarta-feira, Draghi irá ao Parlamento sob ordem de Mattarella. “O Presidente da República não aceitou a demissão e convidou o presidente do Governo a apresentar-se perante o Parlamento para dar explicações e para que nessa sede se faça uma avaliação da situação que foi originada na sequência dos debates de hoje no Senado”, explicou a Presidência italiana em comunicado.

Só na próxima semana é que se terá um desfecho desta situação e se saberá em definitivo se há solução para crise ou se Draghi vai mesmo sair do Governo.

A origem da “crise da incineradora”

A retirada de apoio do Movimento Cinco Estrelas veio depois de o Governo ter enviado ao Senado um pacote de medidas intitulado “Ajudas às famílias” no valor de 23 mil milhões de euros que teria como objectivo apoiar os italianos perante a perda do poder de compra (a inflação chegou a um recorde dos últimos 36 anos esta semana em Itália). O executivo juntou também a votação de uma moção de confiança à votação do pacote.

As propostas não agradaram ao M5S, especialmente a sugestão de se construir uma incineradora de lixo nos arredores de Roma. A situação está até já a ser chamada “crise da incineradora“.

Conte anunciou logo que se ia abster da votação, afirmando que as medidas “são insuficientes”. Já há algumas semanas, o partido foi palco de uma cisão entre o ex-líder e actual Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luigi Di Maio, e Conte, tendo a maioria fiel a Conte decidido não apoiar a moção de confiança.

No entanto, como não queriam votar contra e ser culpados pela queda do Governo, decidiram abster-se ao sair da sala durante o voto. Esta decisão não terá sido uma surpresa para Draghi — no início do mês, após uma reunião entre os dois, Conte já tinha falado num “profundo mal-estar no Movimento 5 Estrelas acerca dos ataques preconceituosos contra nós”.

O líder do M5S reforçou também que “não tinha dado garantias” sobre a permanência do partido no Governo. “A comunidade está a clamar para que eu retire o M5S. O futuro da nossa colaboração reside nas respostas que teremos”, ameaçou. Resta agora saber se os Ministros do M5S vão efectivamente sair do Governo, o que provocaria a sua queda.

O ressentimento de Conte

Há muita especulação sobre os objectivos do M5S ao tirar o apoio a Draghi, com os analistas a especularem que o pacote de medidas era apenas um pretexto para precipitar a queda do Governo.

Como lembra Jorge Almeida Fernandes, no Público, o partido passou de 32% dos votos nas eleições de 2018 para 10% nas sondagens actuais. Perante esta quebra, a tentação de passar para a oposição na esperança de se conseguir revitalizar pode ser demasiado forte para Conte resistir — especialmente num contexto onde o  Governo está em xeque devido à inflação e à postura hostil contra a Russa.

Essa mesma postura contra a Rússia é outro dos pontos de choque entre Draghi e Conte. Enquanto que o primeiro-ministro tem seguido a tendência das outras potências ocidentais e sido duro contra Moscovo, há um segmento da opinião pública que prefere uma atitude mais diplomática e que se pode rever mais em Conte, já que o seu Governo com a Liga era claramente mais próximo de Putin.

Conte também se tem oposto ao envio de armas à Ucrânia, sendo estes um dos assuntos que mais tem dividido o Governo e a vida interna dos partidos, incluindo o próprio Movimento 5 Estrelas, tendo inclusivamente sido a causa da saída de Luigi Di Maio do partido.

Di Maio também disparou contra Conte, a quem pediu “maturidade”, descrevendo Draghi como um “homem de palavra”. “Não é fácil recompor esta maioria e seria necessário um acto de maturidade. Seria necessária responsabilidade por parte dos M5S, que já não existe, agora é o partido de Conte. É um partido que decidiu colocar a sua própria bandeira à frente da segurança e da unidade nacional”, atirou.

A relação entre Conte e Draghi também tem muito que se lhe diga. De acordo com o politólogo Massimo Franco, Conte “nunca fez o luto” da queda do seu Governo. “Depois de lágrimas e cenas de psicodrama, ficou dentro de si um ressentimento surdo e persistente contra o ‘usurpador’”, afirma. Esta crise foi também um “triunfo dos instintos suicidas da Itália política”.

O que esperar do futuro

Há agora três cenários possíveis em cima da mesa para quarta-feira. O primeiro é a continuidade de Draghi na chefia do Governo, mas este é visto como o mais improvável, já que será muito difícil que o M5S volte atrás e torne a apoiar o Governo.

O segundo é que Mattarella aceita o pedido de demissão e pede ao Parlamento que forme uma nova coligação.

No entanto, há ainda uma terceira possibilidade caso o Presidente aceite a saída de Draghi, mas convoque novas eleições, deixando o país em suspenso e sem autonomia para fazer um novo Orçamento de Estado ou para aprovar as medidas previstas no Plano de Recuperação e Resiliência.

Uma coisa é certa — independentemente do que ficar decidido na quarta-feira, será difícil Itália conseguir encontrar outra figura que consiga garantir a estabilidade num país que já tende a ser instável politicamente e que está profundamente dividido.

Com a incerteza no contexto internacional devido à guerra na Ucrânia e ao possível corte do fornecimento de energia russa (sendo Itália um dos países mais dependentes de Moscovo) e uma inflação que não dá sinais de acalmar, quem ficar à frente do leme do país terá muitos desafios pela frente.

Adriana Peixoto, ZAP //

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