A tribo mais isolada do mundo foi incomodada outra vez. Quem são e porque são agressivos?

Membros da tribo Sentinelese montam guarda à sua ilha.

Influencer teve muita sorte e só acabou preso no mês passado, depois de ter tentado dar um coco e uma Coca-Cola à tribo da Sentinela do Norte. A história explica-nos porque estes humanos “não contactados” são tão agressivos.

Um youtuber norte-americano de 24 anos foi detido na Índia, no passado dia 29 de março, por tentar aproximar-se (ilegalmente) de uma tribo não contactada.

Mas Mykhailo Viktorovych Polyakov, que se auto-intitula nas redes sociais um “turista de perigo”, não tentou estabelecer contacto com uma tribo qualquer.

Polyakov foi até à Sentinela do Norte, onde os chamados sentineleses vivem altamente isolados há mais de 55 mil anos, naquela ilha que, se pertencesse ao arquipélago dos Açores, só seria maior em área do que o Corvo.

NASA

a remota Ilha Sentinela do Norte, retratada nesta imagem fotográfica do Advanced Land Imager do satélite Earth Observing-1 (EO-1) da NASA.

É sabido que o grupo reage habitualmente de forma defensiva contra estranhos e que já matou outros turistas que tentaram contacto.

Ainda assim, o influencer documentou em detalhe a sua viagem de 9 horas até à perigosa ilha do Oceano Índico, parte das Ilhas Andamão, onde mora a tribo indígena, considerada a população mais isolada do planeta: não tem qualquer contacto com gente de fora e evitam-no a todo o custo.

“Rejeitam vigorosamente todo o contacto com o exterior, atacando qualquer pessoa que se aproxime”, avisa a Survival International, ONG que luta há anos para os proteger.

Com uma jangada insuflável que modificou, o jovem norte-americano atravessou cerca de 37 quilómetros para chegar à ilha. Ficou ao largo da ilha, a soprar um apito, para chamar os indígenas.

Por breves momentos, foi até à areia para deixar um coco e uma Coca-Cola como “oferenda” e recolher grãos, enquanto filmava tudo com uma GoPro. Para sua sorte, nenhum membro da tribo apareceu.

Mais tarde, o criador de conteúdos foi detido por invasão de propriedade, de acordo com o New India Express, mas também poderá ser acusado por filmar e fotografar a tribo. Enfrenta até 5 anos de prisão se for condenado.

“O cidadão norte-americano foi presente a um tribunal local após a detenção e está agora sob custódia policial durante três dias para ser interrogado”, disse o chefe da polícia de Andamão e Nicobar, HGS Dhaliwal.

Histórico de hostilidade (que não surgiu “à toa”)

Os sentileneses, que se acredita serem os últimos descendentes vivos dos primeiros humanos a chegarem à Ásia, são estritamente protegidos pela lei indiana, precisamente por causa dos perigosos contactos da tribocom o exterior. A Índia proíbe rigorosamente qualquer visita à Sentinela do Norte.

Durante o tsunami de 2004, os sentineleses tentaram atacar com flechas os helicópteros da Guarda Costeira Indiana que sobrevoaram a zona, mas os indígenas tornariam-se famosos dois anos mais tarde, depois de terem assassinado dois pescadores indianos, enquanto estes pescavam ilegalmente perto da ilha.

Quando a âncora do seu barco se soltou durante a noite, deram à costa sem saber e foram mortos pela tribo. Uma semana depois da sua morte, os seus corpos foram pendurados em estacas de bambu com vista para o mar, confirmou a polícia local na altura.

John Chau teve destino parecido, em 2018. O missionário foi morto à flechada pelos sentineleses enquanto tentava convertê-los ao cristianismo. O seu corpo nunca foi recuperado e 7 pessoas foram presas por ligação ao assassinato, todos pescadores locais que o terão ajudado a chegar à ilha.

“Não temos nenhuma ideia sobre os seus sistemas de comunicação, sobre a sua história ou sobre a sua cultura, ou como podemos aproximar-nos”, disse na altura o antropólogo Anup Kapoor, da Universidade de Delhi, à AFP.

Mas esta hostilidade não surgiu “à toa”. Um dos primeiros contactos com o grupo, que remete ao final do séxulo XIX, prova-o.

Rapto à primeira vista

Quando os britânicos desembarcaram na Sentinela do Norte, viram um casal e quatro crianças e “em nome da Ciência” raptaram-nos e levaram-nos para casa do oficial britânico responsável, como o próprio, M.V. Portman, partilhou em livro publicado em 1899.

Os adultos morreram, doentes, enquanto as crianças terão sido devolvidas com algumas “oferendas”. A hostilidade pode ter nascido nesse dia: os resultados da experiência britânica podem ter sido devastadores para a tribo, como perceberemos mais à frente.

“Não se pode dizer que tenhamos feito mais do que aumentar o seu terror geral e hostilidade para com todos os visitantes”, refletiu o colonizador.

A partir dos anos 70, as visitas aos sentineleses voltaram a estar na moda: as pessoas pediam boleias para a ilha, em busca de uma aventura no desconhecido. Apesar de alguns gestos que pareceram amigáveis, o contacto teve sempre uma resposta: violência.

Porcos oferecidos — bem como uma boneca — acabaram enterrados, e presentes bem recebidos, como bananas, cocos e ferro, foram pagos com moeda diferente: disparos de flechas.

Quando uma mulher se sentou com os sentineleses

Em 1991, algo mudou, possivelmente por necessidade. Um barco humanitário que lá chegou com cocos foi bem recebido e chamado à costa pelos sentineleses, mas o contacto nunca se desenrolou numa amizade. O momento impressionante ficou registado em vídeo:

Entre os antropólogos que foram ao local estava uma mulher, Madhumala Chattopadhyay, que desde criança tinha um fascínio pelo grupo e que acabou por conviver na praia com crianças e mulheres sentinelesas.

“Estávamos todos um pouco apreensivos porque alguns meses antes a equipa enviada pela administração tinha encontrado a hostilidade habitual”, disse à National Geographic a indiana, 27 anos depois do momento inesquecível. “Começámos a fazer flutuar cocos até eles. Para nossa surpresa, alguns dos sentineleses entraram na água para apanhar os cocos”, enquanto as mulheres e as crianças observavam à distância.

Mas “um jovem de cerca de 19 ou 20 anos estava junto a uma mulher na praia, de repente, levantou o seu arco. Chamei-os para virem apanhar os cocos usando palavras tribais que tinha aprendido quando trabalhei com outras tribos da região”, recordou: “a mulher empurrou-o e o rapaz entrou na água para apanhar cocos”.

“Mais tarde, alguns dos membros da tribo vieram tocar no barco. Sentimos que esse gesto indicava que já não tinham medo de nós”. A equipa tentou, mas a tribo não os levou até à selva. Um mês depois, tentaram contacto outra vez, com uma equipa maior.

“Viram-nos aproximar e vieram ao nosso encontro sem as suas armas”, conta a antropóloga, mas desta vez entraram no barco sem autorização e “tentaram levar a espingarda que pertencia à polícia, confundindo-a com um pedaço de metal”. Quando um dos membros da equipa tentou oferecer um ornamento feito de folhas a um dos membros da tribo, a situação tornou-se muito perigosa.

“O homem ficou zangado e sacou da faca. Fez-nos um gesto para sairmos imediatamente e nós saímos”, recordou a cientista à revista, em 2018.

Eventualmente, a Índia desistiu: as visitas e missões de ajuda foram proibidas em 1996. A guarda costeira patrulha atualmente uma zona tampão perto da costa para tentar evitar que os forasteiros se aproximem demasiado.

Tribo “não contactada”, mas diferente

A tribo é, como outras cerca de 100 grupos em partes remotas espalhados pelo mundo, considerada “não contactada”.

Por definição, ser um ser humano “não contactado” não implica nunca ter visto um humano ou nunca ter tido algum tipo de contacto com alguém fora da sua tribo. Os “não contactados” são “povos tribais que evitam o contacto com pessoas de fora. Podem ser povos inteiros ou subgrupos de tribos maiores que têm contacto”, explica a organização de defesa dos direitos dos povos indígenas e tribais Survival International.

Estas tribos não deixam de ser incontactadas só porque alguém as grava ou interage com elas; também podem contactar com outros humanos, populações vizinhas, normalmente outras tribos indígenas com quem efetuam, muitas vezes, trocas.

E também não estão “presas” na Idade da Pedra — uma ideia que muitos de nós “deste lado” temos. Sim, muitos sabem que nós estamos deste lado, mas optam, com todo o direito, não viver como nós.

Apesar de tudo, os sentilenseses são diferentes no sentido em que, ao contrário da maioria, não têm grupos vizinhos e são o povo mais isolado do mundo. Os povos indígenas vizinhos foram dizimados pela doença e pela violência após a colonização britânica das suas ilhas.

Como vivem os sentineleses

E estas tribos “não contactadas” também evoluem, ao contrário do que se pode pensar. Olhemos para os próprios sentineleses, que “usam metal que foi levado pelas águas ou que recuperaram de navios naufragados nos recifes das ilhas”, explica a Survival International: “o ferro é afiado e utilizado para a ponta das suas flechas”.

Os sentineleses vivem em três grupos, compostos por cerca de 150 pessoas. Não se sabe que nome dão a si mesmos — até porque ninguém sabe que língua falam — mas um povo vizinho, Onge — cujo contacto com os britânicos lhes custou 85% da população —, chama-os de “Chia daaKwokweyeh“.

A tribo nómada de caçadores-coletores sobrevive à base da caça, que é uma espécie de mistério na ilha, mas que se pensa ser à base de javalis selvagens e caranguejos-dos-coqueiros. Vive também da recolha de frutos e outros alimentos, e é conhecida pela sua habilidade para construir barcos (canoas estreitas) e pescar em águas rasas.

Vivem em cabanas grandes, que dão para várias famílias, ou em abrigos temporários na praia, com espaço para uma família. Tanto os homens como as mulheres vestem apenas cordas de fibra, à cintura, ao pescoço e à cabeça, embora os homens usem um cinto mais grosso à cintura. Carregam lanças, arcos e flechas.

Sabemos tudo isto com base na observação, ao longe, a partir de barcos ancorados sempre à distância de pelo menos uma flecha.

O trauma dos brasileiros Zo’é

Este tipo de grupos também não beneficiariam de virem para a nossa beira, como muita gente pensa. A falta de imunidade a várias doenças — até das mais simples, como a gripe — é de maior preocupação.

“Já se sabe muito bem que os povos não contactados não têm imunidade a doenças externas comuns como a gripe ou o sarampo, que os poderiam exterminar completamente”, disse Caroline Pearce, diretora da ONG Survival International, em comunicado.

Um grande exemplo é o da tribo brasileira Zo’é. Até 1987, viveram isolados na floresta amazónica, mas tudo mudou depois do primeiro contacto com o mundo exterior. Quando missionários evangélicos da Missão Novas Tribos começaram a interagir com eles, a tribo sofreu um grande colapso demográfico devido à exposição a doenças como gripe e malária. Calcula-se que mais de um terço da população tenha morrido poucos anos após o primeiro contacto.

“É nosso dever protegê-los”

“É inacreditável que alguém possa ser tão imprudente e idiota”, disse a diretora da ONG sobre o recente comportamento do influencer norte-americano. “As ações desta pessoa não só puseram em perigo a sua própria vida, como puseram em risco a vida de toda a tribo sentinelense”. E aproveitou para lembrar o mundo de outra injustiça a acontecer na Índia com os Shompen, grupo não contactado da ilha Grande Nicobar, não muito longe de Sentinela do Norte.

“Os Shompen serão exterminados se a Índia levar por diante o seu plano de transformar a sua ilha na ‘Hong Kong da Índia'”, defendeu a ativista, referindo-se aos planos de construir de raiz uma cidade multibilionária com 650 mil habitantes, com um porto, um aeroporto internacional e uma central elétrica.

“O fator comum em todos estes casos é a recusa dos governos em respeitar o direito internacional e reconhecer e proteger os territórios dos povos isolados”, avisa.

O modo de vida destes povos é cada vez mais ameaçado pela invasão, pela destruição ambiental e por contactos indesejados. Os defensores destes grupos têm reforçado a necessidade de respeito pelo seu desejo de não serem contactados e apelado à aplicação de medidas de proteção nos seus territórios.

Mas também não as devemos deixar sozinhas e em paz: “é nosso dever protegê-los”.

Tomás Guimarães, ZAP //

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