Paul Givan sai em protesto pelos controlos fronteiriços de produtos causados pela saída do Reino Unido da União Europeia.
Segundo o Expresso, a demissão do primeiro-ministro da Irlanda do Norte é um protesto contra as promessas incumpridas de Boris Johnson.
Paul Givan vai demitir-se esta quinta-feira da chefia do governo autónomo norte-irlandês, em protesto pelos efeitos do Brexit no comércio do território. Segundo a emissora britânica BBC, a renúncia ao cargo tem efeitos imediatos.
O Partido Unionista Democrático (DUP), de Givan, governa em coligação com a formação republicana Sinn Féin (SF), ao abrigo do Acordo de Sexta-feira Santa.
O acordo, em 1998, pôs fim a décadas de conflito sangrento entre protestantes, que defendem a permanência da Irlanda no Reino Unido, e católicos, partidários da reunificação irlandesa.
Ao abrigo desse acordo, a saída de Givan implica a queda da vice-primeira-ministra Michelle O’Neill, do SF, já que o Executivo tem de incluir sempre o maior partido de cada comunidade, atualmente DUP e SF. O mais votado indica o primeiro-ministro e o segundo, o vice-primeiro-ministro. Se um cair, o outro cai.
O DUP sempre se opôs ao chamado Protocolo da Irlanda do Norte, com que o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, resolveu a questão da circulação de bens entre partes do Reino Unido.
A Irlanda do Norte tem fronteira aberta com a Irlanda, aspeto crucial do acordo de paz. Ora, a Irlanda, membro independente da União Europeia (UE), cumpre a livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais com os demais 26 países.
A saída do Reino Unido da UE e do Mercado Único obriga a verificações de produtos nas fronteiras, que Johnson fez instalar no mar da Irlanda, isto é, entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte, ambas partes constituintes do Reino Unido.
Os unionistas ficaram furiosos, até porque lhes fora prometido o oposto pelo Governo conservador de Londres.
Oposição critica a demissão
Edwin Poots, colega de partido de Givan que detém a pasta da Agricultura no governo norte-irlandês, mandou suspender, quarta-feira, os controlos agroalimentares nos portos da região de produtos vindos da Grã-Bretanha.
Este assunto é controverso dentro do próprio governo regional. O ministro britânico para a Irlanda do Norte, Brandon Lewis, demarcou-se da decisão.
O titular da Agricultura, George Eustice, considerou “desnecessária” uma intervenção de Londres. Johnson afirmou recentemente que os controlos fitossanitários eram “uma loucura”. Mas eles estão no Protocolo assinado entre Londres e Bruxelas para viabilizar o acordo comercial entre Reino Unido e UE.
Já a oposição norte-irlandesa criticou a decisão de Poots, realçando o dever do Reino Unido de cumprir os tratados internacionais que assina.
O Partido Social-Democrata e Liberal (republicano) considera a demissão de Givan uma “traição ao povo”. A líder do partido Aliança (transversal entre católicos e protestantes) também censurou a decisão.
“Sem primeiro-ministro, o Executivo não se pode reunir. Ficamos com um Executivo zombie, incapaz de propor nova legislação, lançar novas políticas significativas ou tomar qualquer ação que exija decisões governamentais”, sublinhou a líder.
As críticas vieram também do lado unionista. O Partido Unionista de Ulster (UUP) considera a crise “fabricada” e o seu líder, Doug Beattie, acredita que “o seu único efeito será instabilidade” para um povo “que já sofreu que chegue e irá sofrer mais, a médio e longo prazo”.
Para alterar o Protocolo, defende, é preciso “trabalho duro nos bastidores” e não desavenças públicas.
Em Londres há quem culpe Boris Johnson. O trabalhista Shaun Woodward, que foi ministro da Irlanda do Norte no início do século, não ficou surpreendido.
“O primeiro-ministro não resolveu o Protocolo da Irlanda do Norte. Andou a dizer uma coisa a um grupo, e outra a outro grupo. Está a colher o que semeou”, acrescenta, “a desiludir o povo da Irlanda do Norte, sejam unionistas ou nacionalistas”.
É provável que a crise política não acarrete a queda do resto do Governo. Com eleições marcadas para 5 de maio, os demais ministros podem permanecer em funções de gestão. Atrasaria, porém, a aprovação de um orçamento para três anos que está em discussão pública.
CE lamenta a “incerteza e imprevisibilidade”
Em Londres, o conservador Julian Smith — que foi ministro para a Irlanda do Norte no Governo britânico entre 2019 e 2020 — reagiu com preocupação.
“Hoje penso no vasto número de mulheres e homens da Irlanda do Norte que amam a terra onde vivem, celebram o acordo singular que conquistou e manteve a paz e que se sentem mais à vontade na escala de cinzentos do que a preto e branco. Essa maioria prevalecerá. Não percam a fé”, escreveu no Twitter.
Thinking today about the vast number of women & men in Northern Ireland who love where they live, celebrate the unique agreement that has won & maintained peace & who are at ease with shades of grey rather than black & white. This majority will prevail. Keep the faith.
— Julian Smith MP (@JulianSmithUK) February 3, 2022
Enquanto governante, Smith esteve envolvido na resolução de uma crise política na Irlanda do Norte que deixou a região sem governo autónomo entre 2017 e 2020.
O líder do DUP, Jeffrey Donaldson, já ameaçou várias vezes deitar abaixo o governo regional em protesto contra a fronteira que Boris criou no mar da Irlanda.
O dirigente britânico não comentou as notícias da demissão de Givan, tendo um seu porta-voz indicado que “gostaria de ver a situação resolvida, reconhecendo ser competência do Executivo da Irlanda do Norte”. Não quis comentar a hipótese de os controlos passarem para o lado da Grã-Bretanha.
Em Bruxelas, a Comissão Europeia (CE) lamentou a “incerteza e imprevisibilidade” geradas pela suspensão dos controlos.
O Executivo comunitário declara ter “trabalhado de forma incansável com o Reino Unido para resolver os problemas práticos ligados à aplicação do Protocolo”.
O vice-presidente da CE, Maros Sefcovic, prometeu discutir o assunto com a ministra dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido, Liz Truss, insistindo na importância dos controlos de bens “para os cidadãos e empresas norte-irlandeses continuarem a beneficiar do acesso ao Mercado Único” e “evitar uma fronteira física na ilha da Irlanda”. Tal ameaçaria o processo de paz.
Segundo o jornal norte-irlandês Belfast Telegraph, quinta feira de manhã ainda havia camiões a passar pelos controlos portuários, saídos de um ferry vindo da Escócia. Não houve confirmação oficial sobre a continuidade dos mesmos.