Podcast evita morte de um condenado (seis vezes)

Família Flowers

Curtis Flowers foi julgado seis vezes pelo mesmo promotor de justiça. Um programa de investigação mudou o seu destino. O promotor continua a acreditar que Curtis é culpado.

A própria equipa responsável pelo 60 Minutes, programa da CBS que já se estreou há 53 anos, admite que nunca se tinha cruzado com um caso como este. O protagonista é Curtis Flowers.

O norte-americano, negro (será importante mais à frente, neste artigo), é de Mississippi e já foi julgado…seis vezes. Sempre por causa do mesmo crime e sempre pelo mesmo promotor de justiça, Doug Evans.

Em julho de 1996, foram encontradas quatro pessoas mortas dentro de uma loja em Winona, estado do Mississippi. A proprietária e três pessoas que eram funcionárias na loja. Todas assassinadas com tiros na cabeça. Desde cedo a polícia local foi pressionada a encontrar o culpado mas ninguém tinha visto o que acontecera.

Curtis Flowers tinha trabalhado naquela loja durante três dias, naquele verão de 1996. Foi despedido duas semanas antes do crime porque tinha deixado de aparecer na loja. Porque tinha sido despedido e porque devia 30 dólares à proprietária, foi considerado suspeito – pela polícia e pelos familiares das vítimas.

Meses depois, e apesar de um interrogatório oficial da polícia, nada aconteceu. Curtis mudou-se para o Texas, onde passou a viver com a sua irmã. Até que a polícia apareceu em sua casa, com um mandato de detenção emitido em Mississippi. Os agentes explicaram que era suspeito do homicídio de quatro pessoas; Curtis ainda perguntou aos polícias se tinham a certeza de que estavam a prender a pessoa certa.

A arma do crime não foi encontrada, não foram recolhidos registos de impressões digitais ou de ADN. Mas o painel de jurados terá demorado apenas uma hora para decidir: Curtis é culpado. Foi preso aos 27 anos, condenado a pena de morte.

Recurso apresentado e decisão revertida.

Mas Curtis Flowers voltaria a ser julgado mais cinco vezes, por esse crime. Sempre pelo promotor de justiça Doug Evans. Um processo inédito na história da Justiça dos Estados Unidos da América.

Nos três primeiros julgamentos, a decisão repetiu-se: Curtis foi o assassino. Mas houve três recursos e sempre com o mesmo desfecho: decisão anulada devido a má conduta do Ministério Público – deturpação de provas por parte do promotor e discriminação na seleção dos jurados.

Brancos vs. negros e o podcast

Na contabilidade dos jurados, no primeiro julgamento os 12 eram brancos; no segundo, terceiro e último havia um negro em cada painel; no quinto apareceram três negros; e no quarto eram 7-5, com maioria branca.

Neste quarto julgamento, em 2007, houve claramente uma divisão entre as raças – os sete brancos declararam que Curtis era culpado, os cinco negros indicaram que Curtis era inocente. No total, 61 jurados brancos e 11 negros – e os 61 brancos votaram sempre culpado.

E o promotor Doug Evans continuou a “perseguir” Curtis. Nada no sistema dos EUA impede essa repetição de processos, por parte do mesmo promotor.

O sexto e último julgamento, em 2010, voltou a terminar com a sentença de pena de morte. Mas a equipa do podcastIn the Dark‘, depois de receber um e-mail sobre este caso, decidiu investigar o assunto. Foi até Winona, ficou lá durante um ano a bater às portas e a entrevistar centenas de pessoas.

Não havia uma única prova concreta que apontasse para a incriminação de Curtis. As “testemunhas”, na verdade, estavam a ser condicionadas nos seus depoimentos. Ninguém ligou à polícia naquele dia, a dizer que tinha visto alguém suspeito a caminhar em direção à loja.

Os agentes da lei chegavam junto dessas pessoas, eles próprios apresentavam a narrativa e as “testemunhas” diziam que sim, confirmavam a versão: “Os polícias chegavam à minha beira e diziam logo: ‘Eu sei que você viu o Curtis naquele dia‘” – e não tinha visto.

Até que encontraram Clemmie Fleming, que tinha dito oficialmente que tinha visto Curtis a fugir da loja, no dia do crime. Repetiu essa versão cinco vezes. Mas, em entrevista à equipa do podcast, Clemmie admitiu que, afinal, não sabia ao certo o dia em que viu Curtis a correr. Clemmie contou que, mais tarde, disse aos promotores que não tinha a certeza do dia em que tinha visto Curtis a correr – mas “não quiseram saber”.

Odell Hallmon foi outra pessoa importante nesta investigação. Odell assegurou que Curtis lhe tinha confessado que era o autor dos homicídios. Mas, ao podcast, disse que tinha inventado essa história para chegar a acordo com os promotores para evitar penas de prisão por múltiplas acusações criminais.

As investigações do ‘In the Dark’ continuaram e a equipa descobriu que há muitos anos que o promotor Doug Evans afastava pessoas negras dos júris.

Depois da emissão do programa, em 2019, o Supremo Tribunal dos EUA decidiu que Doug Evans e o próprio estado do Mississippi tinham violado os direitos constitucionais de Curtis Flowers – que saiu da prisão meio ano depois.

Foram 23 anos atrás das grades. Muitos deles no «corredor da morte», à espera.

E, para o tal promotor de justiça Doug Evans, Curtis ainda deveria estar preso. Em entrevista ao 60 Minutes, o promotor explicou que colocou Curtis em tribunal seis vezes porque “sabia” que ele era culpado. “Eu sabia e as famílias das vítimas sabiam. E elas merecem que seja feita justiça”.

Doug Evans considera que nenhuma das testemunhas alterou o seu discurso. Ou melhor, podem ter alterado a sua versão mas, como não foi em tribunal e sob juramento, não conta.

Doug Evans nunca ouviu a emissão famosa do podcast – mas está convencido de que esse programa foi orquestrado para retirar crédito ao seu caso.

Nuno Teixeira, ZAP //

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