No início do século 19, uma prostituta de um bordel flutuante no cidade de Cantão casou-se com Cheng I, um temível pirata que operou no Mar do Sul da China, durante a dinastia Qing.
Ching Shih, um dos nomes pelos quais é conhecida, significa “viúva de Xheg”, mas o legado que deixou ultrapassou em muito o do seu marido, noticiou o Big Think. Após a sua morte, a mulher sucedeu-lhe e comandou mais de 1.800 navios piratas e cerca de 80.000 homens. O famoso Barba-Negra comandou quatro navios e 300 piratas.
“Ela foi absolutamente, inquestionavelmente, a maior pirata que alguma vez viveu”, disse Laura Sook Duncombe, autora do “Pirate Women: The Princesses, Prostitutes, and Privateers Who Ruled the Seven Seas” (“Mulheres Piratas: As Princesas, Prostitutas e Corsários que Arruinaram os Sete Mares”, em tradução livre).
“Pirateou durante mais tempo. Ganhou mais dinheiro. Rendeu-se de livre vontade, conseguiu manter o seu dinheiro e viver o resto dos seus dias em liberdade, em vez de ser [encurralada] e assassinada por um governo como aconteceu com o Barba-Negra”, continuou a escritora.
Cheng I era comandante da Frota da Bandeira Vermelha dos navios piratas. Tinha conseguido unir muitas organizações de piratas chinesas. Casou-se com a jovem de 26 anos em 1801 e Ching participou “plenamente na pirataria do marido”, escreveu Dian H. Murray em “Pirates of the South China Coast, 1790-1810” (“Piratas da Costa Sul da China, 1790-1810”, em tradução livre).
De acordo com a publicação, Cheng procurou a sua noiva devido à sua reputação de mulher de negócios: aparentemente, usava os segredos que aprendeu como prostituta para exercer poder sobre os seus clientes ricos e politicamente ativos.
Há rumores de que Ching exigiu um controlo igual da frota pirata como condição para casar. “Onde a perspicácia empresarial começa a manifestar-se foi na forma como se tornou líder de toda a confederação”, referiu Dian H. Murray.
Era raro haver mulheres a liderar piratas. O escritor só tem conhecimento de outra, Hon-cho-Io, que esteve no ativo em Hong Kong na primeira metade do século 20.
Seis anos após o casamento, Cheng I morreu, aos 42 anos. As circunstâncias da sua morte são desconhecidas, mas alguns relatos indicam que morreu na sequência de um tsunami, enquanto outros acreditam que foi assassinado no Vietname.
O filho adotivo de Cheng, Cheung Po Tsai, foi originalmente o herdeiro do controlo da Frota da Bandeira Vermelha. Mas o jovem pescador também tinha sido seu amante.
“Ao contrário do Ocidente, a adoção ‘adulta’ era frequentemente praticada na China, a fim de estabelecer uma base de parentesco para uma maior interação, particularmente de tipo comercial ou de discipulado”, indicou Dian H. Murray.
Poucas semanas após a morte de Cheng I, Ching tinha tomado Cheung Po como seu amante também, acabando por solidificar a relação através do casamento. Logo obteve a liderança da Frota da Bandeira Vermelha.
Os navios piratas tinham frequentemente algumas mulheres a bordo, mas não é claro até que ponto eram ou não piratas”, apontou Dian H. Murray. No sul da China não havia estigma ligado ao facto de as mulheres estarem a bordo de um navio. Mas não terá sido fácil, muito menos para a viúva de um pirata, controlar tantos fora-da-lei.
Um funcionário da East India Company chamado Richard Glasspoole foi capturado pelos piratas de Ching Shih em setembro de 1809 e mantido até dezembro do mesmo ano. No seu relato, estimou que havia 80.000 piratas sob o comando de Ching e cerca de 1.000 grandes navios e 800 menores, além de barcos a remos.
Ching unificou a frota de piratas usando um código de leis. O código era rigoroso: qualquer pirata que desobedecesse às ordens de um superior devia ser decapitado no local. O código era particularmente invulgar nas suas leis relativas a mulheres cativas. Se um pirata violasse uma mulher em cativeiro, seria condenado à morte. Se o sexo entre os dois fosse consensual, ambos seriam condenados à morte.
Existem outros relatos do código de Ching que afirmam que se um pirata tomasse uma mulher em cativeiro, seria obrigado a ser-lhe fiel. “O que quer que pensassem sobre ela, parece claro que os piratas respeitavam e obedeciam à sua autoridade”, notou Dian H. Murray.
A Frota da Bandeira Vermelha sob o domínio de Ching permaneceu invicta, apesar das tentativas dos oficiais da dinastia Qing, da marinha portuguesa e da Companhia das Índias Orientais de a banirem. Após três anos de notoriedade, Ching finalmente retirou-se em 1810, aceitando uma oferta de amnistia do governo chinês.
“O que precipitou a rendição parece ter sido um conflito entre as Frotas Negra e Vermelha e os seus líderes, o que levou primeiro à rendição da Frota Bandeira Negra e depois, em última análise, à frota Bandeira Vermelha”, continuou o escritor.
Ching morreu em 1844, com 69 anos. O legado que deixou penetrou na cultura popular e inspirou uma personagem de um dos filmes “Piratas da Caraíbas”.