Pastores usam profecias e revelações para convocar “guerra santa” por Bolsonaro

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A derrota de Jair Bolsonaro nas eleições gerou um fratura no universo evangélico brasileiro. Enquanto alguns líderes de igrejas tentam aproximar-se do governo Lula da Silva, um grupo de pastores aderiu ao movimento que defende uma intervenção militar e o retorno de Bolsonaro ao poder.

Vários desses pastores pertencem a igrejas pequenas ou nem sequer atuam em templos físicos. Nas redes sociais, porém, alcançam milhões de pessoas e pregam uma espécie de guerra santa contra o novo governo, noticiou a BBC News Brasil.

Entre os conteúdos que divulgam estão várias profecias e revelações que dizem ter recebido de Deus – como uma revelação sobre a destruição do Supremo Tribunal Federal (STF), uma visão sobre um pacto que Lula teria feito com demónios e uma mensagem de que Deus seria favorável a uma intervenção nos poderes da República.

Um dos pastores com maior projeção no movimento é Sandro Rocha. Vive em Guaratuba, município com 37 mil habitantes no litoral do Paraná, e pertence à Igreja do Porto de Cristo, que funciona num bairro pobre.

No Twitter, o pastor usa o seu segundo nome, Mauricio, e soma mais de 120 mil seguidores. No YouTube são quase 500 mil e os seus vídeos já tiveram quase 75 milhões de visualizações. A 11 de janeiro, publicou no YouTube um vídeo com o título “Pequeno sinal” e a imagem de uma explosão numa torre de energia.

Dias antes, três torres de energia haviam sido derrubadas em diferentes partes do país. A polícia investiga se os atos têm alguma relação com o movimento que tenta derrubar o governo Lula.

Nesse vídeo, Sandro Rocha associa o que aconteceu com as torres à vontade divina. “Quem é que tá agindo? É Deus”, indicou. No mesmo vídeo, afirmou que o “Exército não é representado por alguns generais que estão lá em cima”. “Eles estão perdendo o comando da tropa. A coisa – pra eles, né? – tá bem complicada”, disse.

No Twitter, a 01 de novembro, publicou uma imagem em que aparece num protesto que bloqueou uma rodovia. O tweet continha a seguinte mensagem: “Pare de falar e tome uma atitude!!!! #Caminhoneiros #Intervençãomilitar”.

Também no Twitter, Sandro Rocha foi um dos primeiros a espalhar uma das informações falsas que mais circularam em grupos bolsonaristas em novembro: a de que Lula tinha morrido e estava a ser substituído por um sósia.

A 18 de julho de 2022, foi recebido no Palácio do Planalto pelo general Augusto Heleno, ministro de Segurança Institucional do governo Bolsonaro. O encontro foi registado na agenda oficial de Heleno. A BBC questionou o ex-ministro sobre o teor do encontro. Este respondeu: “Se encontrasse esse pastor, não o reconheceria. Não me recordo de tê-lo recebido”.

Em 2020, Sandro Rocha gravou um vídeo ao lado do bloguer bolsonarista Oswaldo Eustáquio, descrevendo uma série de revelações que disse ter recebido de Deus. A primeira delas trata de uma explosão no STF. “Ficou tudo preto, queimado, não ficou nada”, disse o pastor.

Depois da explosão, referiu ter visto “quatro forcas e quatro pessoas enforcadas”. “Não sei quem eram, foi uma visão. E o Espírito Santo frisava: “todos acham que são três, mas vão ser quatro””, prosseguiu o pastor.

Em seguida, falou de outra revelação – essa sobre a entrada de um anjo com uma espada no Congresso. “Eu vi sangue no chão. Então, no Congresso, eu vi esse anjo, anjo de Deus, em posição de ataque, pra entrar no Congresso”, afirmou.

Por fim, Sandro Rocha citou uma visão sobre o Exército. “Eu vi eles marchando e faziam barulho na rua. Vai começar no Sul”, afirmou. “Muita gente vai morrer, vai haver uma guerra no Brasil”, completou.

Valdirene Moreira é outra estrela no universo dos pastores bolsonaristas youtubers. Vive em Guarapari, cidade com 120 mil habitantes no Espírito Santo, não está associada a nenhuma igreja conhecida mas tem centenas de milhares de seguidores em diferentes contas no YouTube.

A 15 de novembro, Lucas Moreira, filho da pastora, publicou um vídeo ao lado da mãe numa manifestação que bloqueou a rodovia BR-101. “Nós fazemos a nossa parte, Deus faz a dele, há tempo de paz e há tempo de guerra”, afirmou a pastora.

Noutro vídeo, publicado a 08 de janeiro, Valdirene comentou as invasões ocorridas horas antes em Brasília. “Infelizmente, gente, embora Zacarias ensine que não é por força nem por violência, muitas vezes no passado o Senhor permitiu coisas acontecerem pra que chegasse àquilo que é a vontade dele”, disse.

Desde novembro, quando o YouTube cancelou a página da pastora, esta tem recorrido às contas dos filhos e das duas novas páginas para continuar a publicar na plataforma.

Outro pastor que tem feito profecias políticas é Reginaldo Rolim, ex-vereador de Fortaleza que também se define como apóstolo e profeta no Ministério Atalaia do Deus Vivo, uma pequena igreja na capital cearense.

A 29 de outubro, na véspera do segundo turno, Reginaldo disse ter recebido a seguinte revelação: Bolsonaro ganharia as eleições, mas Lula seria declarado vencedor. “Muitas pessoas dizem que Bolsonaro ia dar um golpe militar, só que eu via que o Exército é que tomava a frente, intervinha nas eleições e divulgava algo que estava em oculto e que estava sendo tramado há muito tempo atrás”, disse o pastor.

Reginaldo afirmou que, ao intervir nas instituições, o Exército estaria na verdade agindo em nome de Deus. “O Senhor disse assim: ‘Sou eu que entro nos Poderes e faço justiça'”.

Reginaldo indicou que a mesma revelação mostrou-lhe que Lula teria feito um pacto com “demónios”. “Eu via que o governo do PT colocou instrumentos, eu não via como seres humanos, mas como espíritos, como demónios, que os demónios entravam dentro de instituições”, declarou.

“O Lula fazia um pacto com os outros espíritos, mas eu não via o Lula, eu via um espírito. Esse espírito fazia um pacto com os outros espíritos, pra que esse espírito representando a pessoa de Lula assumisse a Presidência da República”, referiu.

Nem sempre as profecias citadas pelos pastores têm desfechos que consideram positivos. É o caso de uma profecia feita pelo pastor Marcelo de Carvalho dias após a posse de Lula, na qual disse ter recebido a revelação de que a bandeira brasileira seria alterada.

“A bandeira do Brasil não será mais verde e amarela, estou profetizando. A bandeira do Brasil vai mudar, vai ser vermelha. Deus mostrou que as bandeiras, estou falando literalmente, as novas bandeiras do Brasil já começaram a ser confecionadas”, disse o pastor.

Marcelo de Carvalho atua no Ministério Ciência da Profecia, uma igreja sem endereço físico. O pastor conta com mais de 200 mil seguidores no YouTube. No mesmo vídeo, Marcelo citou outra revelação: “Deus mostrou rachaduras em todos os lugares do Brasil”, afirmou. “Sabe o que isso significa? Significa que o Brasil será destruído”.

Mas eis que, nesse cenário, o pastor aponta uma saída: a compra de um curso virtual de 389 reais (cerca de 70 euros) para “sobreviver ao que está vindo”.

“Diante dessa revelação, diante dessa sentença, Deus me mandou fazer o seguinte: o curso estava concluído, mas agora, em função do novo governo, do que Deus mostrou, Deus colocou no meu coração o seguinte: vou começar a acrescentar materiais nesse curso”, indicou.

O pastor disse que, no vídeo, apenas reproduziu revelações de outra pessoa – ainda que, na gravação, diga que recebeu aquelas profecias diretamente de Deus.

Sobre o curso, Marcelo disse que “é apenas um curso que ensina as pessoas a viver melhor em meio a crises financeiras, a cultivar e armazenar alimentos, se possível, a ter menos dívidas”.

Marcelo disse ainda que tirou o vídeo do ar porque era muito longo. Questionado se os seus vídeos poderiam estimular atos como as invasões de 08 de janeiro, disse: “Sempre disse que o povo tinha que aceitar o novo governo do presidente Lula. Essa, inclusive, foi a razão de eu ser xingado por muitas pessoas de direita”.

A BBC perguntou ao YouTube se a plataforma sabe que tem sido usada para difundir discursos religiosos que podem agravar a violência política – e o que a companhia tem feito para evitar isso.

Uma porta-voz do Youtube respondeu que a empresa tenta equilibrar o combate à desinformação com o respeito às liberdades religiosa e de expressão. Disse ainda que usa vários mecanismos para remover vídeos que violem as suas regras, como gravações com informações falsas sobre as eleições ou que possam provocar danos à sociedade.

Para Vinicius do Valle, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e que pesquisa o universo evangélico desde 2010, as redes sociais permitiram a ascensão de líderes religiosos sem vínculos com grandes instituições.

O especialista afirmou que, por não estarem ligados a grandes igrejas, muitos desses pastores “não têm uma grande instituição pela qual eles têm que ser responsáveis, prezar pela imagem, então eles têm uma liberdade maior para fazer profecias, acusações e agir de forma mais extremista”.

Vinicius do Valle apontou ainda que a maneira como as redes incentivam conteúdos que causam fortes emoções pode estar a abrir as portas para um extremismo religioso que talvez não tivesse tanto apelo em igrejas físicas.

“Os pastores que têm seu maior público nas redes sociais, eles até têm um estímulo para serem mais radicalizados, porque as redes sociais são um ambiente que trazem essa radicalização maior, esse extremismo maior”, indicou.

Além disso, disse que as redes sociais propiciaram aos pastores uma nova fonte de financiamento. É possível, acrescentou, que muitos pastores de igrejas pequenas recebam mais pelos canais do YouTube do que pelos dízimos pagos pelos fiéis.

Para Celeste Leite dos Santos, doutora em Direito pela USP e promotora de Justiça em São Paulo, os vídeos dos pastores citados na reportagem têm de ser analisados pelos investigadores dos atos de 08 de janeiro.

“Quando você começa a incitar os fiéis à prática de crimes, você ultrapassa os limites de uma liberdade religiosa. Porque todo direito fundamental, ele não é ilimitado”, afirmou ainda.

“Se nós temos a liberdade religiosa, nós também temos a liberdade de todos os cidadãos brasileiros de poderem contribuir com o Estado social e democrático de direito vigente e não sofrer intimidações, não correr o risco de que amanhã ele vai acordar e já estar vivenciando um regime de exceção obtido através da violência e da força”, concluiu.

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