Papisa Joana: a lenda da única mulher que foi (ou não) Papa — e de um estranho trono perfurado

Constantin Film

Johanna Wokalek como Papisa Joana em “Die Päpstin” (Sönke Wortmann, 2009)

Reza a lenda que uma mulher disfarçada de homem teria ascendido ao trono papal no século IX, governando a Igreja Católica como João VII por um breve período — antes de ser tragicamente desmascarada. E desde então, diz-se que por isso, o primeiro trono em que o novo Papa se senta é uma antiga retrete.

A figura da Papisa Joana intriga historiadores, teólogos e curiosos desde a Idade Média.

Alegadamente, Joana teria sido uma mulher que, disfarçada de homem, ascendeu ao trono papal durante o século IX. No entanto, a veracidade da sua existência permanece envolta em mistério, alimentando um dos mais persistentes mitos da história da Igreja Católica.

Circulam várias versões da história da Papisa Joana. A lenda aparece pela primeira vez documentada em textos do início do século XIII do frade dominicano, historiador e escritor Estêvão de Bourbon, que situa os acontecimentos em 1099.

Mas o cronista Martinho de Opava, também do século XIII, data o papado de Joana em três séculos e meio antes, entre os pontificados de Leão IV e Bento III.

Segundo a lenda, Joana seria uma jovem de origem oriental, talvez de Constantinopla, nascida com o possível nome de Giliberta.

Extremamente culta, tinha formação em filosofia e teologia, e teria desde jovem demonstrado uma inteligência extraordinária. Ter-se-á disfarçado de homem para poder estudar, e viajado para Atenas, onde se destacou nos estudos.

Sempre vestida de homem, Joana ter-se-á posteriormente mudado para Roma, onde se apresentou como monge, surpreendendo os doutores da Igreja com sua sabedoria. A sua erudição e piedade levaram-na a ser admitida nos círculos eclesiásticos mais elevados, até ser eleita Papa com o nome de João VII.

Martinho de Opava conta uma versão diferente da história: Joana teria nascido na cidade de Mainz, na Alemanha, filha de um casal inglês aí residente à época.

Em “Chronicon Pontificum et Imperatum”, o cronista e durante vários anos capelão papal escreve: “Johannes Anglicus, nascido em Mainz, foi papa durante dois anos, sete meses, e quatro dias, e morreu em Roma, pelo que depois ficou vago o cargo de papa durante um mês. Reivindica-se que este João foi mulher (…) “.

Segundo os relatos de Opava, já adulta, Joana terá conhecido um monge, por quem se apaixonou e com quem terá passado três anos na Grécia.

Quando o casal se mudou para Roma, Joana terá decidido vestir roupas masculinas, para evitar o escândalo que a relação poderia causar, e fez-se passar por monge, com o nome de Johannes Angelicus, tendo ingressado no mosteiro de São Martinho.

Joana terá conseguido ser nomeada cardeal, adotando o nome de João, o Inglês. Segundo diferentes relatos, em virtude de sua notável inteligência, foi eleita papa por unanimidade após a morte de Leão IV, a 17 de julho de 855.

A história culmina de forma trágica: durante uma procissão pública, Joana teria entrado em trabalho de parto e dado à luz, revelando a sua identidade feminina.

Monogrammist IK / British Museum / Wikipedia

Papisa Joana dá à luz durante uma procissão (ilustração de 1539)

As versões divergem quanto ao seu destino — algumas relatam que terá sido apedrejada até à morte pela multidão; outras sugerem que foi afastada silenciosamente e que o seu filho se tornou bispo.

Duos habet et bene pendentes

Durante vários séculos, a lenda foi tida como verdadeira, reforçada por inúmeras  referências mitológicas à chamada sedia stercoraria, ou “cadeira da verificação papal” — por alguns considerada a evidência mais forte de que teria havido uma mulher no trono papal.

Esta alegada prática, que a Igreja nega que alguma vez tenha existido, implicava que o papa recém-eleito teria de se sentar numa cadeira com um orifício, por baixo do qual um cardeal se encarregava de se certificar de que se tratava de um homem.

O historiador Fernand Leroy conta que, após o exame papal, o cardeal anunciava à multidão: “Duos habet et bene pendentes!” — em tradução livre, algo como “tem dois e estão bem pendurados”.

A.D. / Wikipedia

“Cadeira da verificação papal”, ou sedia stercoraria: Prova de masculinidade do Papa Inocêncio X ao assumir o seu pontificado.

Segundo o Detroit Catholic, a sedia stercoraria existiu efetivamente, mas tinha um propósito diferente: o novo sumo pontífice sentava-se na cadeira, cuja função original seria uma retrete, num gesto de humildade que reforçava a ideia de que, apesar de o Papa estar investido de grande poder, não é Deus — continua a ser um ser humano, sujeito às necessidades da natureza.

Apesar da persistência dos relatos ao longo dos séculos, que deram mesmo origem a filmes “históricos” como Die Päpstin (Sönke Wortmann, 2009), ou Pope Joan (Michael Anderson, 1972), os estudiosos modernos tendem a considerar a Papisa Joana como não mais do que uma lenda.

A ausência de registos contemporâneos, a inconsistência cronológica com a lista oficial dos papas e o contexto político da época — marcado por fortes disputas entre poder secular e eclesiástico — sugerem que a história poderá ter sido usada como sátira ou crítica à autoridade papal.

Verdade ou ficção, a Papisa Joana permanece uma figura fascinante que continua a levantar questões sobre género, autoridade, e a forma como a história é contada — ou silenciada.

Armando Batista, ZAP //

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.