Durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de 1.000 soldados japoneses terão sido massacrados por crocodilos de água salgada na Ilha de Ramree, na Birmânia. Mas historiadores e especialistas duvidam da veracidade da história — que nenhum relatório militar oficial de ambos os lados a confirma.
No início de 1945, no âmbito da Guerra do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, as forças aliadas encurralaram 1.000 soldados japoneses num mangal ao largo da costa da Birmânia, atualmente Myanmar.
Apenas 20 dos combatentes japoneses conseguiram sair com vida. Os restantes foram alegadamente comidos vivos por hordas de crocodilos de água salgada de aspeto pré-histórico.
Este acontecimento horrível, conta o How Stuff Works, é conhecido como o “massacre dos crocodilos da ilha de Ramree“.
“Essa noite foi a mais horrível que qualquer membro das tripulações das lanchas motorizadas alguma vez experimentou“, relata um comandante dos Aliados, o tenente-comandante Bruce S. Wright.
“Os tiros de espingarda dispersos no pântano escuro como breu, perfurados pelos gritos dos homens feridos esmagados pelas mandíbulas dos enormes répteis, e o som turvo e inquietante dos crocodilos a rodopiar, criaram uma cacofonia infernal que raramente foi reproduzida na Terra”, continua o depoimento de Wright.
“Ao amanhecer, os abutres chegaram para limpar o que os crocodilos tinham deixado… Dos cerca de mil soldados japoneses que entraram nos pântanos de Ramree, apenas cerca de vinte foram encontrados vivos“, conclui o relato do tenente-comandante.
Em 1968, o Livro Guinness dos Recordes Mundiais atribuiu ao massacre a dúbia distinção de “maior número de mortes humanas num ataque de crocodilo“, com cerca de 900 mortos.
Mas, nas últimas décadas, historiadores e herpetologistas lançaram dúvidas sobre essa história horrível.
Embora seja evidente que muitos soldados japoneses morreram na batalha pela ilha de Ramree, não há qualquer menção a um “massacre de crocodilos” nos relatórios militares oficiais — britânicos ou japoneses. Além disso, os crocodilos de água salgada não são conhecidos por “festins alimentares” desta escala, especialmente em presas humanas vivas.
Então, qual a origem deste conto apócrifo e como é que se espalhou tão longe?
As origens do “Massacre da Ilha de Ramree”
O relato acima citado foi escrito por Bruce S. Wright, um tenente-comandante canadiano a quem se atribui a invenção da ideia de “unidades de homens-rã”, soldados mergulhadores que podiam espiar o inimigo a partir da água.
Em 1945, Wright participou no assalto conjunto britânico e indiano à ilha de Ramree, que os Aliados esperavam capturar aos japoneses e utilizar como aeródromo estratégico.
Como líder da sua unidade de homens-rã, Wright estava encarregado de efetuar o reconhecimento do terreno, mas também passava horas a documentar a vida marinha local, que incluía tubarões e polvos. Depois da guerra, Wright tornou-se um respeitado biólogo e autor de vida selvagem.
Curiosamente, pode ter sido a influência de Wright como naturalista que ajudou a lançar o mito do massacre do crocodilo na imaginação do público.
Wright escreveu o seu relato sobre os crocodilos assassinos num livro, publicado em 1962 com o título de “Wildlife Sketches: Near and Far“. Mas a história foi depois retomada por outro cientista, o conservacionista Roger Caras.
No seu livro de 1964, “Dangerous to Man“, Caras chamou ao incidente de Ramree “um dos ataques mais deliberados e maciços ao homem por animais de grande porte de que há registo”.
Caras admite que “se a história tivesse vindo de outra fonte que não Bruce Wright, sentir-me-ia tentado a desconsiderá-la. Mas Bruce Wright, um naturalista profissional altamente treinado, estava lá em Ramree“.
O problema é que, embora Wright estivesse tecnicamente em Ramree, não estava entre as testemunhas que afirmaram ter ouvido os gritos dos japoneses enquanto eram atacados pelos crocodilos gigantes.
De acordo com uma versão posterior da história no seu livro de memórias “The Frogmen of Burma“, Wright ouviu a história de camaradas britânicos nas tripulações dos barcos que patrulhavam a ilha.
No seu relato, Wright nunca diz que testemunhou pessoalmente o massacre. “Aquela noite foi a mais horrível que qualquer membro das tripulações das lanchas alguma vez experimentou”, escreveu Wright, usando a terceira pessoa.
Mas é precisamente devido à reputação de Wright como observador atento do mundo natural que o seu relato em segunda mão, e provavelmente embelezado, foi aceite como um facto.
Os crocodilos de água salgada comem humanos?
Sim, de acordo com o herpetologista Steven Platt, o crocodilo de água salgada, Crocodylus porosus, também conhecido como crocodilo estuarino, é uma das duas espécies de crocodilos que “atacam regularmente os seres humanos“.
Os crocodilos de água salgada podem atingir 7 metros de comprimento e pesar mais de uma tonelada, e, ao contrário dos jacarés e dos crocodilos mais pequenos, os crocodilos de água salgada defendem agressivamente o seu território — e comem ocasionalmente um humano.
Todos os anos, dezenas de pessoas são mortas por crocodilos de água salgada, como a infeliz rapariga de 8 anos que foi atacada e comida à frente dos seus amigos na Indonésia em 2021.
Mas quão comuns são os ataques de crocodilos de água salgada? Em 2015, registou-se um total de 180 ataques de crocodilos no Sudeste Asiático, na Índia costeira e na Oceânia, as regiões onde vivem os crocodilos de água salgada. 79 desses ataques foram fatais.
Dado que menos de 100 pessoas são mortas por crocodilos de água salgada todos os anos em todo o Sudeste Asiático e na Oceânia, quais são as probabilidades de 900 soldados japoneses terem sido comidos vivos por crocodilos vorazes durante uma noite horrível, numa pequena ilha?
O historiador Frank McLynn, no seu livro sobre a batalha pela Birmânia, concluiu que o massacre de crocodilos da ilha de Ramree “ofende todos os cânones da verificabilidade histórica” e desafia a lógica ecológica.
“Se milhares de crocodilos estiveram envolvidos no massacre, como é que estes monstros vorazes sobreviveram antes e como é que conseguiram sobreviver depois?”, questiona o The Avocado num artigo de 2019 sobre o assunto.
A verdadeira história da ilha de Ramree
Antes de mais, é de notar que a batalha teve lugar ao longo de um mês e não foi um acontecimento noturno. Mas, se os 900 soldados japoneses não foram devorados por crocodilos, como relata Wright, então como é que morreram?
Bem, para começar, os japoneses não perderam 900 soldados em Ramree.
De acordo com um estudo do herpetologista Steven Platt e uma investigação do programa “Nazi World War Weird“, da National Geographic, cerca de 500 dos 1.000 soldados japoneses originais conseguiram escapar com vida dos mangais — informação que é confirmada em arquivos militares japoneses.
Ainda restam 500 soldados japoneses mortos em Ramree — número suficiente para fazer um bom festim; mas muito poucos deles, se é que algum, foram vítimas de crocodilos.
De acordo com os aldeões birmaneses locais que estavam vivos durante a batalha de Ramree, incluindo alguns que foram recrutados pelos militares japoneses, a maioria das baixas japonesas no pântano deveu-se à desidratação e a doenças causadas pela exposição e pela falta de comida e água limpas.
Então, o que eram os sons aterradores que as patrulhas britânicas teriam ouvido naquela fatídica noite de fevereiro de 1945? Talvez haja uma resposta para isso também.
De acordo com os registos militares britânicos a que a investigação da National Geographic teve acesso, na madrugada de 18 de fevereiro de 1945, os Aliados descobriram uma “tentativa desesperada” de centenas de soldados japoneses de atravessar a nado um canal que separava a ilha de Ramree do continente birmanês.
“À exceção de alguns nadadores, é duvidoso que algum tenha sobrevivido à travessia“, lê-se no relatório oficial britânico. “Estima-se que pelo menos 100 japoneses tenham morrido ou se tenham afogado nessa noite… 200 mortos é considerado uma estimativa conservadora.
“Sabe-se que cerca de 40 barcos carregados se afundaram. Possivelmente, outros 50 japoneses morreram no mangue devido à exposição e à falta de comida e água. Foram feitos 14 prisioneiros“, detalha o relatório.
Este foi, muito provavelmente, o verdadeiro massacre da Ilha Ramree, perpetrado por soldados humanos numa guerra terrível, e não por predadores sedentos de sangue.
Mas havia crocodilos no local
Apesar de a grande maioria das baixas japonesas na Ilha Ramree ter sido causada por causas convencionais, há alguma credibilidade na história dos crocodilos.
Quando a equipa de Steven Platt entrevistou os aldeões locais, estes disseram que 10 a 15 soldados japoneses podem ter sido atacados e mortos por crocodilos quando tentavam nadar no canal.
Outro comandante aliado informou que os soldados japoneses em fuga foram vítimas de patrulhas navais — e de tubarões — quando tentavam chegar ao continente. Portanto, há provas de que pelo menos alguns soldados foram mortos por grandes predadores que espreitavam na água.
E depois há uma pista horrível sobre a origem do mito da Ilha Ramree. Na manhã seguinte às forças aliadas terem abatido centenas de soldados japoneses em fuga, os militares britânicos aperceberam-se da chegada de alguns caçadores oportunistas para se alimentarem dos mortos.
“O dia seguinte apresentou um aspeto sombrio para aumentar o horror da cena“, diz o relatório oficial britânico. “Crocodilos que antes eram considerados raramente vistos apareceram nas margens do canal em número crescente.”
Alguns crocodilos terão mesmo tido o seu festim… mas os soldados que devoraram já se encontrariam mortos.
Assim, o mais estranho da história do Massacre de Crocodilos da Ilha Ramree é o facto de não ter acontecido. No entanto, o mito continua vivo…