Na Idade Média, a cabeça de javali era o prato tradicional da noite de Natal no Reino Unido, mas foi progressivamente sendo substituído pelo peru depois da descoberta da América. Só no século XX é que o seu consumo se massificou.
Por terras lusas, o bacalhau é rei, mas no mundo anglo-saxónico, o peru é o prato mais comum na noite de Natal. Mas como é que este animal oriundo do México se tornou um clássico da época festiva?
A verdade é que o peru não foi sempre um prato natalício. A 25 de Dezembro de 1406, o Bispo de Salisbury organizou um jantar. Entre os pratos estavam três ovelhas, meia vaca, 24 coelhos, um porco, meio javali selvagem, sete leitões, dois cisnes, duas galinholas, quatro patos-reais, 20 narcejas, 10 capões e três patos azul-petróleo. Notoriamente, no meio de tantas carnes, está ausente o peru.
Este foi apenas um dos menus com que Chris Woolgar, professor emérito de História da universidade de Southampton, se deparou no estudo dos hábitos alimentares de Richard Mitford, o bispo em questão. O perito escreveu depois o livro The Culture of Food in England 1200-1500, com base nas suas descobertas, revela a BBC.
Um dos pratos mais populares no Natal na Idade Média era a cabeça de javali em conserva, que se pensa que dava uma trabalheira a fazer. Era apresentado com uma maçã na boca e decorado com ervas e tão adorado que até inspirou uma música — the Boar’s Head Carol — que era cantada quando a travessa entrava na sala.
Apesar da sua enorme popularidade, há poucas pistas sobre como o prato era cozinhado. Uma teoria sugere que o focinho do javali era fatiado e decapado em sal durante várias semanas, assim como a carne dentro da cabeça, e era tudo depois cosido de volta.
A carne curada seria depois cortada e misturada com bacon e especiarias para se criar o recheio de dentro da cabeça. Seria tudo depois cozido durante horas com cenouras, cherivias e cebolas e decorado com cinzas pretas a imitar o pelo do javali.
Outra delícia natalícia — que, pelos vistos, de delícia tinha pouco — era o pavão dourado. Um pavão era esfolado, mantendo-se as penas e a cabeça juntas, e o corpo era assado, sendo depois colocado novamente dentro da penugem. As penas eram depois expostas em leque na mesa e a crista era decorada com folhas de ouro.
Certamente que era uma visão impressionante, mas o sabor deixava muito a desejar, sendo uma mistura entre o frango e o faisão. A carne das aves mais velhas também era mais seca e dura. Os molhos usados também eram diferentes dos actuais, havendo uma preferência na altura pelos sabores mais acídicos e à base de vinagre.
A chegada do peru
Foi em 1526 que o peru chegou primeira vez às terras de Sua Majestade, pelas mãos de um jovem de Yorkshire, William Strickland, que voltou a Inglaterra do continente americano. Lá, comprou seis aves com um aspecto estranho e um papo debaixo do bico a comerciantes nativos, que depois vendeu quando aportou em Bristol.
Esta é a história, e apesar de não haver certezas de que é verdadeira, há algumas provas. Em 1981, uma equipa de arqueólogos encontrou em Exeter alguns ossos de peru. Uma nova análise em 2018 mostrou que os ossos estavam rodeados com cerâmicas caras e vidros na escavação, o que sugere que integraram um banquete de elites na altura.
Datados de entre 1520 e 1550, as evidências de que estes perus foram comidos por um grupo de pessoas de alto estatuto social sugere que terá sido na altura em que os perus ainda não eram muito comuns no país e que estes podem ter sido dos primeiros em Inglaterra.
As datas coincidem com o período em que Strickland trouxe a ave, que continua a ser creditado como o pai do peru de Natal no Reino Unido. O rei Eduardo VI até deixou que incluísse o animal no seu brasão de família.
Foram precisos vários séculos até o peru se tornar o prato de preferência entre os comuns dos mortais, mas foram um êxito instantâneo com os mais ricos, que encaravam o animal como um símbolo do estatuto social. O rei Henrique VIII foi o primeiro monarca britânico a comer a ave e era um fã do prato.
A vida assim continuou, com apenas os mais ricos a deliciarem-se com o peru — até à publicação do famoso Cântico de Natal de Charles Dickens. Considerado o pai do Natal moderno, o escritor britânico era também um grande adepto do peru, e a sua obra ajudou a popularizar o prato.
No livro, o rabugento Ebenezer Scrooge eventualmente deixa de ser tão amargo e chega até a comprar um enorme peru para oferecer ao seu funcionário Bob Cratchit, geralmente mal pago. A popularidade da obra, que ainda hoje é um clássico da época natalícia, ajudou a cimentar a tradição do peru da noite de Consoada.
Foi só no século XX, com as inovações na produção de comida, que permitiram baixar os preços, e a inclusão do peru de Natal nos filmes e na televisão, que o peru se tornou mais acessível para as massas, e desde então que é um protagonista essencial para muitas famílias por todo o mundo na noite de 24 de Dezembro.