Após a deserção de Abu Aqla Keikel para o exército, as Forças de Apoio Rápido “castigaram” a população local com violações, pilhagens e assassinatos.
A vergonha levou algumas mulheres ao suicídio. Depois de terem sido violadas por tropas das Forças de Apoio Rápido (RSF), uma das fações da guerra civil do Sudão que já dura há 17 meses, outras mulheres foram mortas a tiro.
Os homens que as tentaram proteger também foram baleados, e houve mesmo quem, ao tentar fugir com o filho recém-nascido, fosse abatido pelos militares em aldeias do sul do país, no estado de Gezira. Quem o conta são testemunhas que sobreviveram ao massacre, ao The Washington Post (WP).
E tudo por causa da deserção do comando regional das RSF, Abu Aqla Keikel, que “mudou de lado” no conflito. No local, os habitantes sabem bem que estão a sofrer um “castigo”, mas só o conseguem contar à imprensa internacional dias depois, devido às pilhagens dos telemóveis e à fraca rede telefónica.
As forças armadas do Sudão, apoiadas pelo Irão, e as RSF, apoiadas pelos Emirados Árabes Unidos, escalam agora a violência num conflito que surgiu depois da expulsão do movimento pró-democracia no país, em 2021, quando estas duas forças se juntaram para afastar esse amigo comum. Mas foi depois disso que as forças armadas e as RSF se viraram uma contra a outra.
O conflito e a insegurança no Sudão foram já responsáveis pela maior crise de deslocação de pessoas deste ano, explicou a Organização Internacional das Migrações.
Agora, explica o WP, “mesmo para os padrões da guerra civil sudanesa” a brutalidade destes saques a aldeias em Gezira não passa despercebida.
Os apoiantes das forças armadas anunciaram a deserção de Abu Aqla Keikel, um poderoso líder da sua tribo Shukria, e publicaram online fotografias suas, mas não deram pormenores sobre o seu paradeiro atual.
Após saber da perda do seu comando, a RSF invadiu 30 aldeias, matou e deteve homens, violou dezenas de mulheres e queimou colheitas.
De acordo com Conferência Al-Jazirah, um grupo da sociedade civil que monitoriza a violência, mais de 300 pessoas foram mortas na aldeia de Tamboul e 124 morreram na aldeia de Sariha.
O Ministério da Saúde do Estado declarou que mulheres e raparigas entre os 6 e os 60 anos tinham sido violadas e agredidas, seis instalações de saúde tinham sido atacadas e dois profissionais de saúde tinham sido mortos.O WP fala numa “chacina”.
As RSF, que terão emitido um aviso no mês passado para que os habitantes de algumas aldeias as abandonassem, “estavam a disparar intensamente contra os campos porque sabiam que a maioria das pessoas se escondia na relva”, contou um habitante de Azraq, Awad Ahmed Arbab, de 50 anos.
Depois de ter visto dezenas de mortes, inclusive de familiares, Arbab tentou fugir. Enquanto o fazia, viu combatentes da RSF matarem a tiro um jovem quando este tentou proteger as suas irmãs de assédio sexual num posto de controlo. Perto dali, disse, uma mulher deu à luz na estrada: ela e o bebé morreram pouco depois.
“Tu não és um homem”, diz um militar a um idoso enquanto o obriga a balir como uma cabra, num vídeo a que o WP teve acesso. Arbab explicou que o homem era um residente de Cartum que tinha fugido dos combates na capital para se refugiar com os pais.
“Tudo o que não conseguiram roubar, destruíram-no”, disse Farouk Sudbiq, um sobrevivente do massacre. “Disseram: ‘Vocês pertencem a Keikel e nós vamos matar-vos por causa disto‘”.
Cerca de 120 mil pessoas fugiram dos últimos ataques em Gezira, comunicou o Gabinete de Coordenação dos Assuntos Humanitários das Nações Unidas.
“As forças armadas nunca têm como alvo os civis”, afirmou um porta-voz militar. Ainda assim, não negou as consequências de uma guerra civil a que não se vê o fim: “Há crianças a morrer”, admitiu.
De acordo com o The Conversation, no final de outubro deste ano tinham já morrido pelo menos 62 mil pessoas neste conflito — 50% mais do que os quase 42 mil palestinianos mortos num ano de conflito em Gaza.