As mulheres sem filhos são egoístas? Desde más cidadãs a híbridos hortícolas, o estigma não é novo

Embroidery woman de Georg Friedrich Kersting / Wikimedia

Os estereótipos negativos em torno das mulheres sem filhos não são novos. Desde serem encaradas como depravadas até comparações com flores, o estigma já é antigo.

Optar por não ter filhos é cada vez mais comum em alguns países. Muitas pessoas veem a decisão de não ter filhos como uma escolha ética e ecológica, feita para proteger o ambiente, as pessoas e outras espécies. Não ter filhos é ser “verde”. Consequentemente, estão a surgir discursos mais positivos sobre a ausência de filhos.

Mas nem sempre foi assim. Em sociedades que encorajam um aumento da taxa de natalidade, a maternidade é frequentemente apresentada como natural e carinhosa. Entretanto, mulheres sem filhos são muitas vezes descritas como falhas biológicas, ou depravadas.

Por exemplo, quando visíveis na cultura popular – muitas vezes não são representadas de todo – mulheres sem filhos são apresentadas como amantes de animais, como a “louca dos gatos“, ou assassinas de animais, como Cruella de Vil. Nestes exemplos, o foco nos animais representa a sua suposta incapacidade de cuidar de humanos (da sua espécie), a sua “antinaturalidade”.

No século XIX, as mulheres sem filhos já eram descritas como egoístas e antinaturais. O mundo natural era, inversamente, usado para descrever mulheres férteis, que eram frequentemente comparadas a flores na literatura.

A associação das mulheres com plantas e fertilidade é antiga, encontrada especialmente em figuras pagãs agrícolas. Deméter, a deusa grega antiga da colheita, por exemplo, era a deusa dos grãos, mas também do casamento e da fertilidade.

Muitas expressões ainda ligam os sistemas reprodutivos das mulheres e flores. Em francês, a flor é uma metáfora para um órgão sexual virgem. Ter as suas flores  é uma expressão para ter menstruação, e ser uma jovem flor (uma jovem mulher em flor) significa que a jovem está pronta para o casamento — e, portanto, reprodução.

As mulheres também são comparadas a flores: em inglês, tanto “flor bonita” como “rosa inglesa” descrevem jovens mulheres atraentes. Reduzir as mulheres a flores, através destas comparações, não é apenas misógino, mas reforça a pressão social para produzir filhos “a tempo”. O tempo é importante nestas comparações, pois as flores murcham rapidamente.

Não ter filhos no século XIX

Mas e as mulheres sem filhos, aquelas flores que não produzirão sementes? A literatura e pinturas da segunda metade do século XIX mostram que eram frequentemente representadas como híbridos hortícolas monstruosos.

Na época, “flores híbridas” — que eram frequentemente estéreis — tornaram-se a metáfora preferida para descrever mulheres sexualmente ativas que eram incapazes ou recusavam ter filhos. Em França, ter e criar filhos era visto como um dever natural e cívico da mulher para a nação. Por outro lado, as mulheres sexualmente ativas mas sem filhos eram frequentemente vistas como antinaturais e perigosas.

As comparações que descreviam mulheres como flores eram historicamente sobre fertilidade. Como foi então que as flores se tornaram uma metáfora para a esterilidade no final do século XIX?

A ênfase nas flores como órgãos sexuais e como metáfora para a sexualidade feminina parece ter sido usada mais frequentemente depois de o botânico sueco Carl Linnaeus ter discutido abertamente a sexualidade das plantas com linguagem antropomórfica no final do século XVIII.

É importante notar que, durante muito tempo, se os homens soubessem que as flores eram órgãos sexuais, acreditavam que eram unissexuais e femininas. Eles não acreditavam que ambos os órgãos, masculino e feminino, estivessem envolvidos na produção de frutos.

Uma vez estabelecida a natureza sexual das plantas, a natureza da metáfora floral mudou e a inocência da flor foi perdida. As flores tornaram-se progressivamente o símbolo de uma jovem senhora com uma sexualidade emergente ou que estava à espera de “dar fruto”.

Híbridos hortícolas

Durante o segundo império na França (1852-1870) e o início da Terceira República (1870-1840), os híbridos hortícolas eram extremamente populares.

Os horticultores desenvolveram plantas e flores grandes que muitas vezes pareciam genitais ampliados (plantas naturais são muitas vezes muito menores e menos coloridas). Estes híbridos tornaram a analogia sexual ainda mais óbvia.

No final do século XIX, os híbridos artificiais passaram a ser usados para descrever, indiretamente, cenas quase pornográficas. Aqui está um exemplo de The Kill (1895), um famoso romance de Émile Zola. Em vez de descrever os personagens a fazer amor, ele descreve as plantas:

À medida que os seus olhares penetravam nos cantos da estufa, a escuridão enchia-se com uma devassidão mais furiosa de folhas e caules; eles não conseguiam distinguir nas terras entre as marantas, suaves como veludo, as gloxínias, com sinos roxos, as dracaenas, como lâminas de laca antiga; era uma grande dança de plantas vivas a perseguir-se umas às outras com fervor insatisfeito.

Muitos dos híbridos criados nessa época eram estéreis. Por isso, tornaram-se uma metáfora para a sexualidade “improdutiva”. Por serem feitos pelo homem, podiam ser vistos como uma perversão das leis da natureza. Comparar mulheres a esses híbridos era uma forma de criticar o que era considerado a artificialidade da sua infertilidade, ou decisão de não ter filhos.

Mulheres férteis e com filhos eram frequentemente comparadas a flores naturais e mais clássicas, como rosas ou lírios.

Na época, a França estava obcecada com a sua baixa taxa de natalidade. Muitos políticos acreditavam que isso explicava por que a França tinha perdido a guerra contra a Prússia (1870-1871). Mulheres sem filhos eram, portanto, também vistas como más cidadãs.

Através das suas comparações com flores híbridas e inférteis, as mulheres que não podiam ou escolhiam não se reproduzir eram consideradas não francesas, indesejáveis e, de certa forma, monstruosas.

Compreender como as mulheres estão associadas à natureza e frequentemente comparadas a flores é essencial para entender como a ausência de filhos continua a ser estigmatizada na sociedade contemporânea. Como a arte contemporânea, a cultura e a própria linguagem que usamos demonstram, as mulheres sem filhos ainda são frequentemente descritas como “antinaturais” ou biologicamente depravadas.

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