Aos nove anos, Yu Hyuk aprendeu sobre a crueldade da vida quando começou a pedir esmolas nas ruas da Coreia do Norte.
Certo dia, Yu Hyuk roubou uma marmita que estava abandonada numa estação de metro. No seu interior, havia uma colher de arroz estragado, ao qual adicionou então vinagre e bicarbonato de sódio para o tornar mais saboroso
No momento em que o dono da marmita voltou, Hyuk foi apanhado e espancado.
Hyuk diz que sabia que roubar era errado, mas estava quase a morrer de fome. Atos ilegais deste tipo eram apenas “parte da vida quotidiana” de grande parte da população da Coreia do Norte.
A sua vida era tão consumida pela necessidade de sobrevivência que não deixava espaço para sonhos.
Hoje com 24 anos, ainda parece surreal para o jovem saber que vai fazer parte do primeiro grupo de K-pop formado por desertores norte-coreanos.
Além de Hyuk, também Kim Seok nasceu na Coreia Norte. São membros da nova banda de K-pop 1VERSE, que dizem pronunciar-se “universe”, em inglês, e que inclui também o japonês Aito e o sino-americano Kenny.
“No início, fiquei com um pouco de medo porque a Coreia do Norte tem uma relação hostil com o Japão. Achei que os norte-coreanos seriam assustadores, mas isso acabou por não ser verdade”, diz Aito, o mais novo dos quatro.
O grupo pretende estrear-se nos EUA ainda neste ano.
Trata-se de uma decisão estratégica da Singing Beetle, a nova distribuidora que está por trás do 1VERSE. As histórias de desertores norte-coreanos podem atrair mais atenção do público americano, uma vez que os executivos notaram muito interesse de potenciais investidores durante visitas aos EUA.
K-pop na Coreia do Norte
Embora Hyuk e Seok sejam ambos da Coreia do Norte, as suas origens são muito diferentes. A família de Seok era mais abastada e vivia perto da fronteira com a China, pelo que tinha acesso a K-pop e às famosas séries de K-drama através de USBs e cartões SD contrabandeados.
Para Hyuk, a música era um artigo de luxo. Mal tinha ouvido falar de K-pop durante a sua vida no Norte, antes de desertar em 2013, mas tinha plena consciência das severas punições associadas ao consumo de entretenimento sul-coreano.
“Nunca conheci ninguém que tenha sido punido por ouvir K-pop, mas ouvi falar de uma família que foi banida da seu aldeia por assistir a um filme sul-coreano”, diz.
O líder norte-coreano, Kim Jong-un, tem intensificado a repressão à entrada da cultura K. Desde 2020, o consumo e a distribuição deste tipo de conteúdo tornaram-se um crime punível com a morte.
Um vídeo raro obtido pela BBC Korean, serviço de notícias em coreano da BBC, no início deste ano, que se acredita ter sido filmado em 2022, mostra dois adolescentes condenados publicamente a 12 anos de trabalhos forçados por assistirem e distribuírem K-dramas.
A primeira exposição real de Hyuk ao K-pop aconteceu depois de o jovem ter chegado à Coreia do Sul. Ele afirma que a vida das estrelas do K-pop estava completamente fora do alcance de pessoas como ele.
Também foi difícil para Hyuk adaptar-se à vida no Sul. No início, não queria sair da Coreia do Norte, uma vez que isso significava deixar para trás o pai e a avó, que o tinham criado depois de a sua mãe desertar, quando tinha dez anos.
Após algumas tentativas, o pai convenceu-o finalmentea partir. Demorou meses a passar por vários países e desembarcar na Coreia do Sul.
Hyuk só viveu com a mãe durante cerca de um ano devido a frequentes discussões. Até hoje, o seu relacionamento ainda é difícil. Viveu sozinho até se mudar para o dormitório com os outros membros do grupo.
O jovem norte-coreano autodenominava-se “o mais solitário dos solitários” — frase que está agora na letra de Ordinary Person, um rap que compôs.
A adaptação ao sistema educacional extremamente competitivo da Coreia do Sul foi outro problema, já que Hyuk não concluiu o ensino fundamental antes da deserção.
Apesar dos desafios encontrou consolo na escrita. Começou com poemas curtos alusivos à sua vida passada na Coreia do Norte.
“Eu não conseguiria partilhar abertamente o que tinha passado, mas queria fazer um registo secreto disso.”
No início, Hyuk acreditava que a sua história não poderia ser compreendida por outras pessoas, e deveria guardá-la para si mesmo. No entanto, depois de entrar para o grupo de música, no primeiro ano do ensino secundário, o seu professor e os amigos incentivaram-no a partilhá-la.
“Disseram-me que as pessoas podem ligar-se genuinamente com as minhas histórias e a minha dor.”
A partir dos 17 anos, Hyuk teve que trabalhar em part-time em restaurantes e fábricas para se sustentar. Apesar da agenda ocupada, encontrava sempre tempo para anotar versos de rap no seu smartphone. Escrevia sobre a sua vida dura e solitária, e o profundo amor que sentia pelo pai.
Em 2018, participou num programa educativo de televisão. Foi então que a sua trajetória única e talento para o rap chamaram a atenção de Cho Michelle, CEO da gravadora Singing Beetle. “Não confiei na Michelle durante cerca de um ano, porque achava que ela estava a enganar-me”, diz Hyuk.
Permaneceu cético porque os desertores norte-coreanos são frequentemente alvo de golpes devido ao conhecimento limitado da sociedade sul-coreana. Mas, aos poucos, percebeu que Cho estava “a investir demasiado tempo e dinheiro” para que tudo aquilo não fosse genuíno.
Superar as diferenças
Hyuk diz que não consegue imaginar como vai ser quando os seus compatriotas norte-coreanos ouvirem as suas músicas.
Se a 1VERSE se tornar um sucesso, poderia causar “sensação” na Coreia do Norte, avalia Ha Seung-hee, investigadora especializada em música e media do Instituto de Estudos Norte-Coreanos da Universidade Dongguk, na Coreia do Sul.
Mas as preocupações em relação à segurança permanecem. Hyuk não quer ser visto como uma voz crítica da Coreia do Norte — por isso, em entrevistas, refere-se à sua terra natal como “a parte de cima” e evita mencionar Kim Jong-un.
“Honestamente, eu gostaria de ser visto como um aprendiz de ídolo do K-pop, sem o rótulo de ser da Coreia do Norte.”
No entanto, Hyuk tem um sentido de responsabilidade em relação à comunidade de desertores, especialmente porque um número cada vez maior de jovens desertores não quer mais revelar as suas identidades.
Hyuk quer mostrar que existe outra forma de assimilação. “Muitos desertores veem uma lacuna intransponível entre si e os ídolos do K-pop. Dificilmente é uma opção de carreira para nós.”
“Portanto, se eu tiver sucesso, outros desertores podem sentir-se encorajados e ter sonhos ainda maiores. É por isso que estou a esforçar-me ao máximo“, diz o jovem.
ZAP // BBC