Violações, corpos na rua e fuga de vírus: rebeldes apoiados pelo Ruanda assombram Goma

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MOISE NIYONZIMA/EPA

Membros das Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) sentam-se depois de se renderem ao Ruanda.

Hospitais estão a abarrotar. Decorre na República Democrática do Congo a pior escalada em 13 anos de um conflito com três décadas, que nasceu no genocídio do Ruanda.

São relatos de horror e caos os que chegam do Congo esta terça-feira. Após vários dias de intensos combates, o Movimento 23 de Março (M23) afirmou  ter tomado a cidade de Goma, a maior cidade do leste da República Democrática do Congo (RDC), a noroeste do país.

No centro da cidade com dois milhões de habitantes, milhares de pessoas fogem dos combates, que envolvem detonações de artilharia e intensas rajadas de fogo de armas ligeiras. Ecoarama durante grande parte do dia de ontem e seguem hoje, segundo jornalistas da agência France-Presse (AFP).

Os hospitais da cidade encontram-se de momento sobrecarregados com feridos e há cadáveres esquecidos pelas ruas, relatam as agências da ONU no local. Há testemunhos de violações cometidas pelos combatentes, avança à Reuters Jens Laerke, porta-voz do gabinete humanitário da ONU (OCHA).

“Estamos a ouvir relatos de profissionais de saúde a serem alvejados e de doentes, incluindo bebés, a serem apanhados no fogo cruzado”, disse Adelheid Marschang, coordenadora da resposta de emergência da Organização Mundial de Saúde (OMS) para o Congo.

“Muito preocupada”, a Cruz Vermelha alerta esta terça-feira para a propagação de vírus, incluindo o Ébola, a partir de um laboratório em Goma “que corre o risco de sofrer um corte de energia”, devido aos violentos combates. A situação “pode ter consequências inimagináveis se as estirpes bacteriológicas, incluindo o vírus Ébola” que o laboratório “alberga, se propagarem”.

Oficialmente, pelo menos 17 pessoas morreram e entre 600 e 700 ficaram feridas esta segunda-feira na cidade. Os combates foram acompanhados por uma vaga de pilhagens. “Dependendo da duração da violência, o fornecimento de alimentos à cidade poderá ser gravemente afetado”, afirmou Shelley Thakral, porta-voz do PAM na capital Kinshasa. Goma é porta de entrada para o comércio de tântalo e estanho, utilizados em telemóveis e computadores.

“Goma está prestes a cair”

É ainda difícil determinar quais as zonas da cidade que caíram nas mãos do M23 e dos soldados ruandeses e quais as que continuam a ser controladas por Kinshasa. Os rebeldes ainda estarão a enfrentar alguma resistência do exército congolês, segundo fontes da ONU, mas as tropas do Congo, pouco a pouco, estão a ser dominadas.

“Goma está prestes a cair”, lamentou esta segunda-feira o ministro francês dos Negócios Estrangeiros, Jean-Noël Barrot, condenando a ofensiva militar.

Algumas unidades do exército tinham começado a render-se, entregando as armas às forças de manutenção da paz da ONU em Goma, disse o exército do Uruguai. A Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO), que inclui soldados uruguaios, esteve envolvida na luta contra o M23 ao lado do exército congolês.

“Não há dúvidas” de que governo ruandês apoia o M23

O agravamento do conflito conduziu a um aumento da tensão com o Ruanda, com o governo da RDC a acusar o governo ruandês de apoiar o M23, uma alegação que foi apoiada pelas Nações Unidas e negada pelo governo do Ruanda. Mas “não há dúvidas” do envolvimento do governo ruandês, garante a ONU.

Enquanto a RDC acusa o Ruanda de apoiar o M23, o Ruanda e o grupo rebelde acusam o Exército de Kinshasa de cooperar com as FDLR, um grupo fundado em 2000 por líderes do genocídio de 1994 e outros ruandeses exilados para recuperar o poder político.

O Governo da RDCongo não fez até ao momento qualquer comentário sobre a alegada captura de Goma pelos rebeldes.

Quem são os rebeldes do M23?

O conflito entre o M23, apoiado por mais de 3500 soldados do Ruanda, segundo a ONU, e o exército congolês dura há três anos, mas recua três décadas.

O M23 — constituído em 4 de abril de 2012, quando 300 soldados das Forças Armadas da RDCongo se sublevaram por alegado incumprimento do acordo de paz de 23 de março de 2009, que dá nome ao movimento, e pela perda de poder do então líder, Bosco Ntaganda — voltou a pegar em armas no final de 2021, depois de uma década adormecido, com ataques contra o Exército da RDC no Kivu do Norte. O grupo é constituído maioritariamente por combatentes de origem tutsi, vítimas do genocídio de 1994 no Ruanda que matou aproximadamente 800 mil pessoas.

Desde 1998, o leste da RDC enfrenta um conflito que envolve milícias rebeldes e pelo Exército, apesar da presença da missão das Nações Unidas. A RDCongo acusa o Ruanda de querer apoderar-se das riquezas do leste do país, algo que Kigali nega.

Risco de guerra regional

A ONU e as potências mundiais receiam que o conflito se transforme numa guerra regional semelhante às de 1996-1997 e 1998-2003, que mataram milhões de pessoas, na sua maioria devido à fome e a doenças.

A Amnistia Internacional apelou esta terça-feira às autoridades da República Democrática do Congo e aos parceiros internacionais para que pressionem todas as partes envolvidas no conflito que assola o leste do país a dar prioridade à proteção dos civis.

O diretor regional da Amnistia Internacional, Tigere Chagutah, pediu através de comunicado para que os civis sejam protegidos e para que seja garantido o acesso à ajuda humanitária urgente. A AI recordou que o conflito no leste da RDC tem sido geralmente acompanhado de violações dos direitos humanos, incluindo assassinatos de civis, violência sexual e ataques a ativistas, como já aconteceu durante a tomada de Goma pelo M23 em 2012.

Por outro lado, a organização Médicos Sem Fronteiras alertou para o facto de cerca de 400 mil pessoas terem fugido desde o início de janeiro e de dezenas de milhares se terem dirigido para centros de deslocados em torno de Goma, onde já vivem mais de 650 mil pessoas.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, apelou no domingo ao Ruanda para se retirar de território congolês e retirar o apoio ao M23.

Em França, Macron está a “fazer tudo o que está ao seu alcance para evitar uma nova escalada e, acima de tudo, para permitir um desanuviamento (…) para ver o que pode ser feito para sair da situação atual”, afirmou um conselheiro da Presidência francesa.

Uma mediação entre a RDCongo e o Ruanda sob a égide do Presidente angolano, João Lourenço, mandatado pela União Africana, falhou em dezembro devido à falta de consenso sobre as condições de um acordo.

Também a África do Sul — que neste escalar do conflito já viu quatro dos seus soldados das forças de manutenção da paz no Congo serem mortos — disse que o seu presidente Cyril Ramaphosa e o seu homólogo ruandês Paul Kagame concordaram num telefonema sobre a necessidade de um cessar-fogo.

Tomás Guimarães // Lusa /

1 Comment

  1. Outro dia normal no Continente Africano…. Como um moçambicano disse e passa o citar “foi para isto que expulsamos os portugueses?”

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