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Quem era a deusa Asherah, a esposa de Deus “apagada” da Bíblia

Sigal Lea Raveh / Wikimedia

No livro do profeta Jeremias, parte do Antigo Testamento da Bíblia e possivelmente escrito no século VII a.C., há curiosas menções a uma “rainha dos céus”.

Especialistas contemporâneos acreditam que se trata, na verdade, de uma divindade antiga que foi cancelada com a invenção do monoteísmo patriarcal: Asherah, a esposa de Javé.

A história torna-se ainda mais interessante quando contextualizamos que Javé é justamente o Deus judaico-cristão, ou seja, aquele que “sobreviveu” das antigas mitologias medio-orientais para se tornar a divindade única do monoteísmo. Por outras palavras, Asherah seria então a mulher de Deus.

Defensora desta tese, a teóloga britânica Francesca Stavrakopoulou, professora na Universidade de Exeter, fez um documentário sob o tema, exibido pela BBC. “Se Asherah for a mulher de Deus, isso seriamente compromete as bases do monoteísmo”, diz ela, no programa.

No vídeo, ela promove uma investigação sobre o tema, ouvindo especialistas e mostrando a presença da deusa em escrituras e esculturas do mundo antigo. Na Bíblia hebraica, o nome Asherah aparece 40 vezes, mas, na maior parte das versões traduzidas, o termo foi suprimido e substituído.

Objetificação para configurar idolatria

Stavrakopoulou identifica um padrão no Antigo Testamento: a substituição de menções originalmente atribuídas à mulher de Deus por simplificações que configuravam idolatria ou elementos da natureza, sobretudo “árvore”, “árvore da vida” e “bosque”.

“Ela era a mãe dos deuses e consorte do deus-supremo, El”, pontua. “Antigas inscrições hebraicas do século 8 a.C. associam-na a Javé (nome que também foi adaptado do hebraico para “Jeová”), a divindade patrona do antigo Israel e Judá. Essas inscrições sugerem que ela era uma deusa protetora, concedendo bênçãos divinas aos adoradores, e que ela desempenhou um papel crucial na mediação entre os humanos e o deus-supremo Javé”, completa.

Para os cananeus, El era o deus criador. E os investigadores contemporâneos acreditam que o Deus bíblico, Javé, é a fusão de deuses de mitologias antigas, inclusive El, no processo de monoteização.

Stavrakopoulou lembra que, embora a Bíblia “frequentemente se refira a Asherah”, isso costuma ocorrer “quase sempre em termos negativos”. “Ela é lançada como uma divindade ‘estrangeira’, adorada tanto por cananeus quanto por israelitas idólatras e judaítas [referente aos habitantes de Judá], vilipendiados por criar imagens ou objetos sagrados que manifestam sua presença”, contextualiza, lembrando que “essas imagens e objetos também recebem o nome de ‘asherah’”.

“A maioria dos estudiosos concorda que o retrato bíblico de Asherah é deliberadamente distorcido e depreciativo, e que ela provavelmente era adorada como um membro importante de um antigo panteão israelita e judaico, no qual Javé desempenhou um papel de liderança”, acrescenta a teóloga.

O teólogo americano Daniel McClellan situa as origens da divindade na Idade do Bronze (de 3300 a 1200 a.C.), entre o povo hurrita, que habitou parte da Mesopotâmia até os séculos XIV ou XIII a.C. De lá, o culto espalhou-se para a antiga Ugarit, a Anatólia (hoje, Turquia), a Fenícia “e o território atualmente ocupado por Israel e Palestina”.

“Ela foi identificada como a consorte ou parceria das altas divindades Anu, da Mesopotâmia, e El, do mundo semítico ocidental, desempenhando assim um papel significativo nos panteões do antigo sudoeste asiático”, complementa. “Estava associada à fertilidade e à guerra e, nos primeiros anos da sua existência, estava associada ao mar e à pesca.”

A ideia de Asherah como mulher de Deus se confirma por achados arqueológicos que vão além de sua representação imagética. Conforme conta McClellan — e também mostra Stavrakopoulou no documentário —, antigas inscrições hebraicas foram descobertas em escavações com textos que mencionam Javé “e a sua Asherah”.

“Uma dessas inscrições foi escrita diretamente sobre um desenho de divindades masculinas e femininas com braços entrelaçados”, relata. O teólogo afirma que “é provável que Asherah também fizesse parte do primeiro panteão israelita”.

A deusa proibida

Segundo a teóloga Stavrakopoulou, as “tentativas de distorcer e difamar” a deusa provavelmente começaram na segunda metade do primeiro milênio a.C, “depois que o templo de Jerusalém foi temporariamente destruído pelos babilónios em 587 a.C.”.

“À medida que o templo foi reconstruído, o mesmo aconteceu com a adoração a Javé: e Javé tornou-se um deus intolerante com todas as outras divindades, incluindo a deusa Asherah”, comenta ela.

Nesse processo, segundo a sua explicação, Javé “assumiu os papéis de outras divindades”. Ao mesmo tempo em que a religião se “masculinizaria”, com a ideia de que “havia apenas um deus, e ele era homem”, Asherah passou a ser tratada como “uma divindade falsa ou ilegítima” e sua adoração passou a ser tachada como “primitiva”.

Apesar de evidências históricas desses processo, há ainda uma resistência na aceitação. “A dificuldade ou relutância com que alguns académicos bíblicos encaram a evidência da pluralidade divina pode muito bem refletir, em parte, um choque cultural ou um desconforto decorrente das preferências religiosas e filosóficas das tradições intelectuais ocidentais”, escreve Stavrakopoulou, no capítulo que assina do livro The Bible and the feminism (A Bíblia e o feminismo).

“O próprio conceito de um ‘Deus’ monoteísta e transcendente, que continua a dominar o discurso cultural ocidental, é o de uma divindade única e solitária de desempenho e envolvimento ‘macrorreligioso’ (…).”

McClellan conta que as tentativas de marginalizar ou apagar Asherah começaram “provavelmente por volta do reinado de Josias”, no século VII a.C., “que implementou uma campanha de centralização do culto para garantir” um monopólio da fé no templo de Jerusalém.

A tática principal era associar o nome dela a um ídolo, e não a uma deusa. “Outra era recontar as histórias dos reis que vieram antes de Josias e pintá-los como reis perversos que estavam conscientemente a violar a lei quando permitiam a adoração de Asherah”, acrescenta.

Deu tão certo que, segundo frisa o teólogo, a partir de meados do século IV a.C. “o judaísmo já tinha praticamente esquecido que a deusa Asherá tinha feito parte do panteão israelita primitivo”.

Esse processo foi intensificado com a ajuda do exílio babilónico, ocorrido no século VI a.C. “A literatura que foi escrita para ajudar Israel a permanecer fiel à sua identidade étnica e ao seu Deus Javé, na sequência dessa crise, ajudaram a reescrever a compreensão que Israel tinha de si próprio”, analisa McClellan.

“Isso incluiu a vilipendiação do culto a Asherah, que tinha lugar antes do reinado de Josias, e a autocompreensão de Israel avançaria dando prioridade a esse novo entendimento do papel de Javé como objeto exclusivo do culto israelita.”

Uma sociedade que privilegia o masculino

Talvez estejam aí as raízes da sociedade patriarcal que se formaria no Ocidente, afinal.

“O apagamento de Asherah e o surgimento dessa cultura mais centrada na figura de um Deus masculino é, apesar de distante da nossa época e da nossa realidade contemporânea, algo que tem muito a dizer simbolicamente sobre as relações entre homens e mulheres no nosso mundo”, reflete Maerki.

“Porque vivemos num mundo marcado pelo machismo, pela centralidade do homem, e pela luta das mulheres cada vez mais por igualdade.”

Mas é uma história que tem sendo revisitada e reescrita. Como comenta Stavrakopoulou no seu texto, “mais recentemente, a maior parte dos estudiosos bíblicos e historiadores das antigas sociedades israelitas e judaicas passaram a reconhecer este retrato antigo”.

Stavrakopopulou, contudo, entende que vestígios desse feminino divino resistiram tanto no judaísmo como no cristianismo.

“No judaísmo antigo, a sabedoria divina estava intimamente associada a uma ‘árvore da vida’, e a sabedoria de Deus era personificada como figura semelhante a uma deusa criada pelo próprio Javé”, diz.

ZAP // BBC

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