Uma equipa de astrofísicos liderada pelo Caltech conseguiu, pela primeira vez, simular a viagem do gás primordial que data do início do Universo até à fase em que é arrastado para um disco de material que alimenta um único buraco negro supermassivo.
A nova simulação de computador põe em causa as ideias que os astrónomos tinham sobre esses discos desde a década de 1970 e abre caminho a novas descobertas sobre a forma como os buracos negros e as galáxias crescem e evoluem.
“A nossa nova simulação marca o culminar de vários anos de trabalho de duas grandes colaborações iniciadas aqui no Caltech”, diz Phil Hopkins, professor de astrofísica teórica.
A primeira colaboração, designada por FIRE (Feedback in Realistic Environments), centrou-se nas maiores escalas do Universo, estudando questões como a formação das galáxias e o que acontece quando estas colidem.
A outra, denominada STARFORGE, foi concebida para examinar escalas muito mais pequenas, incluindo a maneira como as estrelas se formam em nuvens de gás individuais.
“Mas havia uma grande lacuna entre as duas”, explica Hopkins. “Agora, pela primeira vez, conseguimos colmatar essa lacuna”. Para tal, os investigadores tiveram de construir uma simulação com uma resolução mais de 1000 vezes superior à melhor neste campo.
Para surpresa da equipa, que apresentou os resultados do seu estudo no The Open Journal of Astrophysics, a simulação revelou que os campos magnéticos desempenham um papel muito mais importante do que se pensava na formação e definição dos enormes discos de material que giram em torno e alimentam os buracos negros supermassivos.
“As nossas teorias diziam-nos que os discos deviam ser achatados como crepes”, diz Hopkins.
“Mas sabíamos que isso não estava certo porque as observações astronómicas revelam que os discos são na realidade ‘fofos’ — são mais parecidos com um bolo de anjo. A nossa simulação ajudou-nos a compreender que os campos magnéticos estão a sustentar o material do disco, tornando-o mais fofo”, acrescenta.
Fazendo um “superzoom”…
Na nova simulação, os investigadores fizeram aquilo a que chamam um “superzoom” num único buraco negro supermassivo, um objeto monstruoso que se encontra no coração de muitas galáxias, incluindo a nossa Via Láctea.
Estes corpos vorazes e misteriosos contêm entre milhares e milhares de milhões de vezes a massa do Sol, exercendo assim um enorme efeito sobre tudo o que se aproxima.
Há décadas que os astrónomos sabem que, à medida que o gás e a poeira são puxados pela enorme gravidade destes buracos negros, não são imediatamente sugados. Em vez disso, o material forma primeiro um disco que gira rapidamente, chamado disco de acreção.
Quando o material está prestes a cair, irradia uma enorme quantidade de energia, brilhando com uma luminosidade sem igual em quase tudo no Universo. Mas ainda não se sabe muito sobre estes buracos negros supermassivos ativos, chamados quasares, e como se formam e comportam os discos que os alimentam.
Embora os discos em torno de buracos negros supermassivos já tenham sido fotografados anteriormente – o EHT (Event Horizon Telescope) fotografou discos em torno de buracos negros no coração da nossa própria Galáxia em 2022 e em Messier 87 em 2019 – estes discos estão muito mais próximos e são mais calmos do que os existentes em torno dos quasares.
Para visualizar o que acontece à volta destes buracos negros mais ativos e distantes, os astrofísicos recorrem a simulações em supercomputadores, alimentando milhares de processadores que trabalham em paralelo com informações sobre a física que atua nestes cenários galácticos.
Tudo, desde as equações básicas que regem a gravidade até à forma de tratar a matéria escura e as estrelas, é processado.
Este input inclui muitos algoritmos, ou séries de instruções, que os computadores devem seguir para recriar fenómenos complicados. Assim, por exemplo, os computadores sabem que quando o gás se torna suficientemente denso, forma-se uma estrela. Mas o processo não é assim tão simples.
“Se dissermos apenas que a gravidade atrai tudo e que o gás acaba por formar uma estrela e que as estrelas se vão formando, estamos a interpretar tudo muito mal”, explica Hopkins.
Afinal, as estrelas fazem muitas coisas que afetam o que as rodeia. Emitem radiação que pode aquecer ou empurrar o gás circundante. Sopram ventos como o vento solar criado pelo nosso próprio Sol, que pode varrer material. Explodem como supernovas, por vezes lançando material para fora das galáxias ou alterando a química do seu ambiente.
Assim, os computadores têm de conhecer todos os meandros deste “feedback estelar”, uma vez que regula o número de estrelas que uma galáxia pode efetivamente formar.
Construindo uma simulação a várias escalas
Nestas escalas maiores, a física mais importante a incluir e as aproximações que podem ser feitas diferem das escalas mais pequenas.
Por exemplo, à escala galáctica, os pormenores complicados de como os átomos e as moléculas se comportam são extremamente importantes e devem ser incluídos em qualquer simulação.
No entanto, os cientistas concordam que, quando as simulações se centram na área mais imediata em torno de um buraco negro, a química molecular pode ser praticamente ignorada, porque o gás aí existente é demasiado quente para que existam átomos e moléculas.
Em vez disso, o que existe é plasma quente ionizado.
A criação de uma simulação que pudesse cobrir todas as escalas relevantes até ao nível de um único disco de acreção em torno de um buraco negro supermassivo era um enorme desafio computacional – um desafio que também exigia um código que pudesse lidar com toda a física.
“Havia alguns códigos que tinham a física necessária para fazer a parte do problema em pequena escala e alguns códigos que tinham a física necessária para fazer a parte cosmológica do problema, mas nada que tivesse ambas“, diz Hopkins.
A equipa liderada pelo Caltech utilizou um código a que chamaram GIZMO para os projetos de simulação em grande e pequena escala. O mais importante é que construíram o projeto FIRE de modo a que toda a física que lhe adicionassem pudesse funcionar com o projeto STARFORGE e vice-versa.
“Construímo-lo de uma forma muito modular, de modo a que se pudesse ligar e desligar qualquer parte da física que se quisesse para um determinado problema, mas todas elas eram compatíveis”, diz Hopkins.
Isto permitiu aos cientistas simular um buraco negro com uma massa cerca de 10 milhões de vezes superior à do nosso Sol, começando no início do Universo. A simulação aproxima-se desse buraco negro no momento em que um fluxo gigante de material é arrancado de uma nuvem de gás com formação estelar e começa a girar em torno do buraco negro supermassivo. A simulação pode continuar a aproximar-se, resolvendo uma área mais fina em cada passo, à medida que segue o gás no seu caminho em direção ao buraco negro.
Discos magnéticos surpreendentemente fofos
“Na nossa simulação, vemos este disco de acreção formar-se à volta do buraco negro”, diz Hopkins. “Teríamos ficado muito entusiasmados se tivéssemos visto apenas esse disco de acreção, mas o que foi muito surpreendente foi o facto de o disco simulado não se parecer com o que pensámos, durante décadas, que deveria ser.”
Em dois influentes artigos científicos da década de 1970, que descreviam os discos de acreção que alimentam os buracos negros supermassivos, os cientistas assumiram que a pressão térmica – a alteração da pressão causada pela mudança de temperatura do gás nos discos – desempenhava o papel dominante na prevenção do colapso desses discos sob a enorme gravidade que sofrem perto do buraco negro.
Reconheceram que os campos magnéticos podem ter um papel menor em ajudar a sustentar os discos. Em contrapartida, a nova simulação revelou que a pressão dos campos magnéticos desses discos era, de facto, 10.000 vezes superior à pressão do calor do gás.
“Assim, os discos são quase completamente controlados pelos campos magnéticos”, diz Hopkins. “Os campos magnéticos têm muitas funções, uma das quais é sustentar os discos e tornar o material fofo“.
Esta constatação altera uma série de previsões que os cientistas podem fazer sobre esses discos de acreção, tais como a sua massa, a densidade e espessura que devem ter, a rapidez com que o material deve ser capaz de se deslocar deles para um buraco negro e até a sua geometria (por exemplo, se os discos podem ter deformações).
Para o futuro, Hopkins espera que esta nova capacidade de colmatar a lacuna entre as escalas das simulações cosmológicas abra muitas novas vias de investigação.
Por exemplo, o que acontece em pormenor quando duas galáxias se fundem? Que tipos de estrelas se formam nas regiões densas das galáxias, onde as condições são diferentes das da vizinhança do nosso Sol? Qual terá sido o aspeto da primeira geração de estrelas no Universo? “Há tanto para fazer…”, diz.
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