As empresas farmacêuticas não queres investir em novos antibióticos porque estes têm um baixo retorno financeiro. A solução pode passar pelo chamado “modelo Netflix”, mas há quem se mostre cético.
As teorias da conspiração em torno da Big Pharma sugerem que a comunidade médica, em geral, e as empresas farmacêuticas, em particular, especialmente as grandes indústrias, operam com objetivos sinistros e contra o bem público. Além disso, são acusadas de esconderem tratamentos eficazes e até mesmo causarem ou agravarem uma ampla gama de doenças com o único propósito de obter lucro.
O termo Big Pharma carrega uma conotação negativa que evidencia uma suposta natureza perversa e de lucro desenfreado da indústria farmacêutica.
O primeiro antibiótico de sempre, a Arsfenamina, foi comercializado pela primeira vez em 1910, sob a marca Salvarsan. Em pouco mais de 100 anos, os antibióticos mudaram drasticamente a medicina moderna e prolongaram a esperança média de vida em 23 anos.
A partir de 1928, com a descoberta da penicilina, começou a era dourada da descoberta de antibióticos, que atingiu o pico na década de 1950. Desde então registou-se um declínio gradual na descoberta e desenvolvimento de novos antibióticos.
Numa revisão da literatura, publicada em 2019 na revista Antimicrobials, os autores falam em sinais promissores para a descoberta deste tipo de medicação. No entanto, realçam que são necessárias mudanças nos modelos financeiros para traduzir os avanços científicos em antibióticos clinicamente aprovados.
Mas porque é que é tão importante desenvolver novos antibióticos?
A evolução da resistência a medicamentos em muitos patógenos levou à atual crise de resistência antimicrobiana. Especialistas de saúde alertam que estamos a entrar numa era pós-antibiótica, na qual “superbactérias” resistentes a medicamentos ameaçam a nossa saúde e economia.
É um acontecimento natural. As mutações genéticas ocorrem, levando as bactéria a adaptarem-se a mudanças no ambiente, como por exemplo a presença de antibióticos. Com estas alterações, as bactérias tornam-se mais fortes e resistentes.
Estas “superbactérias” são particularmente preocupantes em hospitais, lares e centros de saúde. Um estudo publicado em janeiro do ano passado na revista The Lancet estimou o número anual de mortes globais devido a bactérias resistentes a antibióticos em 1,27 milhões.
Seria de pensar que a solução mais óbvia é produzir mais antibióticos, certo? A realidade não é assim tão simples.
“O pipeline de novos antibióticos secou consideravelmente desde o início dos anos 90, e o número de empresas farmacêuticas que investem na investigação de antibióticos diminuiu”, diz a coordenadora clínica de doença infecciosas Andrea Pallotta, citada pela Cleveland Clinic.
A inação da Big Pharma
Existem várias razões pelas quais as empresas farmacêuticas não estão a investir tanto na produção de novos antibióticos.
Uma das principais razões é que os antibióticos são considerados medicamentos de baixo retorno financeiro. Eles são geralmente administrados durante curtos períodos de tempo, enquanto que os medicamentos para doenças crónicas, como a diabetes ou a hipertensão, são tomados por períodos mais longos.
Além disso, a maioria dos antibióticos é vendida a preços baixos, o que significa que as empresas não conseguem recuperar o investimento em investigação e desenvolvimento.
Outra razão é que a maioria dos antibióticos atua em bactérias específicas, o que significa que o mercado para esses medicamentos é mais reduzido do que para outros tipos de medicamentos. Adicionalmente, ao longo dos anos, as bactérias desenvolveram a já referida resistência aos antibióticos existentes.
A investigação e desenvolvimento para novos antibióticos também é considerada mais complexa e onerosa do que para outros tipos de medicamentos. Por exemplo, os testes clínicos para novos antibióticos envolvem o uso de pacientes com infeções graves, o que é mais complexo e dispendioso do que os testes para outros tipos de medicamentos.
Os critérios regulatórios para a aprovação de novos antibióticos também são normalmente mais rigorosos do que para outros tipos de medicamentos.
Existe ainda uma falta de incentivos governamentais para a investigação e desenvolvimento de novos antibióticos. Há poucas verbas e não existem incentivos financeiros adicionais para as empresas que desenvolverem novos antibióticos.
Nos Estados Unidos, a inovação em antibióticos parou, escreve a WIRED. A última nova classe aprovada pelo Food and Drug Administration (FDA) estreou em 1984.
Uma luz ao fundo do túnel?
Felizmente, ainda existem algumas iniciativas para tentar estimular a procura de novos antibióticos, incluindo a criação de programas de incentivo financeiro para as empresas que o façam.
A chamada Lei Pasteur está pronta a ser votada no Congresso dos EUA. O projeto de lei promete garantir fundos federais para ajudar um pequeno número de antibióticos a chegar ao mercado. A proposta tem apoio bipartidário na Câmara e no Senado, e é apoiada pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos.
Na sua forma atual, a Lei Pasteur prevê 6 mil milhões de dólares, ao longo de vários anos, para construir uma espécie de plano de assinatura para o desenvolvimento de novos antibióticos. O The New York Times fala num “modelo Netflix”.
Basicamente, a lei acabaria com o modelo convencional que vincula os lucros dos antibióticos ao volume de vendas, criando um plano de assinatura que forneceria às empresas farmacêuticas um pagamento adiantado em troca de acesso ilimitado a um medicamento aprovado pela FDA.
“Se queremos que os antibióticos funcionem para os nossos filhos, os nossos netos ou para nós mesmos daqui a dez anos, temos que investir na infraestrutura hoje”, disse ao jornal norte-americano Kevin Outterson, CEO da CARB-X, uma organização sem fins lucrativos que financia empresas que desenvolvam novos antibióticos.
Lei Pasteur não é a cura
Nem todos veem com bons olhos a eventual aprovação da Lei Pasteur. Os críticos argumentam que o projeto de lei é uma espécie de presente à indústria farmacêutica e que é improvável que resolva o problema da resistência a antibióticos.
Numa carta enviada ao Congresso, os opositores sugerem que a lei encorajaria o desenvolvimento de medicamento ineficazes, em parte devido àquilo que dizem ser falha no processo de aprovação de antibióticos da FDA.
Segundo as diretivas da FDA, novos medicamentos podem ser aprovados sob um conceito que permite que novos medicamentos sejam menos eficazes do que os existentes.
“De acordo com a Lei Pasteur, o dinheiro dos contribuintes será desperdiçado como um cheque em branco para os fabricantes farmacêuticos de antimicrobianos de benefício limitado”, lê-se na missiva.
“Como médica, é uma grande preocupação para mim que possamos ter novos medicamentos caros no mercado sem supervisão regulatória para realmente garantir que esses medicamentos sejam clinicamente significativos ou que até mesmo abordem infeções resistentes”, disse Reshma Ramachandran, professora na Escola de Medicina da Universidade de Yale.
O diretor executivo de saúde global da Federação Internacional de Fabricantes e Associações Farmacêuticas, também se mostra preocupado.
“A analogia com a Netflix é boa porque em alguns meses pode-se deliciar com um monte de episódios. Enquanto noutras alturas, você sabe, é verão, você está fora, não vê nada, mas ainda paga a sua assinatura”, disse James Anderson, citado pelo site Marketplace.
O numero de mortes em pessoas abaixo de 65 anos tem vindo a aumentar após o final da pandemia … Talvez as farmacêuticas achem que já não vale a pena perder tempo …