As bactérias da cólera têm um segredo: são mais espertas do que os vírus

// UC Riverside; ktsdesign / Depositphotos

Quando falamos em cólera, a maioria pensa logo em água contaminada e surtos trágicos em regiões vulneráveis, mas, nos bastidores, as bactérias da cólera estão envolvidas numa guerra microscópica que pode moldar o curso das pandemias.

Demos há dias a notícia de que, segundo a OMS, a cólera está a alastrar-se em África, com mais de 157 mil casos e 2.148 mortes entre janeiro e abril.

Mas o que explica a resiliência desta doença, que teima em devastar o continente africano, ano após ano?

Segundo apurou um novo estudo, conduzido por investigadores da EPFL, a cólera tem um segredo: é mais esperta que os vírus.

As bactérias da cólera não estão apenas a lutar contra os antibióticos e as medidas de saúde pública, também estão constantemente a ser atacadas por bacteriófagos (fagos), vírus que infetam e matam as bactérias.

Estes vírus não influenciam apenas infeções individuais, podem criar ou destruir epidemias inteiras. Pensa-se que certos bacteriófagos limitam a dimensão e a duração dos surtos de cólera, matando o Vibrio cholerae, a bactéria responsável pela doença.

A atual pandemia de cólera, a sétima desde a década de 60, tem sido impulsionada pelas estirpes de V. cholerae conhecidas como “sétima pandemia El Tor” (7PET), que se propagou ao redor do mundo.

Nesta autêntica corrida evolutiva, as bactérias adaptaram-se para desenvolver mecanismos de defesa contra estes fagos — por exemplo, muitas estirpes bacterianas transportam elementos genéticos móveis que as equipam com ferramentas anti-virais.

Então, porque é que certas variantes de cólera são tão bem sucedidas a escapar aos ataques dos fagos? Isso permite ou aumenta o efeito devastador do agente patogénico nas populações humanas?

Há um facto que se destaca: no início da década de 90, um surto de cólera no Peru e grande parte da América Latina infetou mais de 1 milhão de pessoas e causou milhares de mortes.

As estirpes responsáveis pertenciam à linhagem sul-americana da África Ocidental (WASA) de V. cholerae. A razão pela qual estas variantes WASA causaram um surto tão grande na América Latina ainda não é totalmente compreendida.

Um novo estudo, conduzido por Melanie Blokesch, investigadora do Instituto de Saúde Global da EPFL, descobriu agora um segredo por detrás destas variantes.

O estudo, publicado a semana passada na revista Nature Microbiology, mostra que a linhagem WASA adquiriu múltiplos sistemas imunitários bacterianos distintos que a protegeram de diversos tipos de fagos, e esta defesa pode ter contribuído para a proliferação da doença.

Os investigadores analisaram as variantes de cólera peruanas da década de 1990, através de testes à sua resistência contra fagos-chave, especialmente o ICP1-,  vírus dominante que tem sido o foco de estudo na área endémica de cólera do Bangladesh, que vê no fago uma forma de restringir os surtos de cólera.

Surpreendentemente, as variantes peruanas eram imunes ao ICP1.

Um melhor sistema imunitário

Ao apagar secções específicas do ADN da variante de cólera e ao inserir estes genes noutras variantes bacterianas para testar, a equipa identificou duas grandes regiões de defesa no genoma da variante WASA, nomeadamente no interior do chamado profago WASA-1 e na ilha genómica Vibrio seventh pandemic island II (VSP-II).

Estas regiões genómicas codificam sistemas anti-fagos especializados que trabalham em conjunto para criar um sistema imunitário bacteriano capaz de se defender contra infeções por fagos.

Um desses sistemas, o WonAB, desencadeia uma resposta de “infeção abortiva” que mata as células infetadas antes que os fagos se possam reproduzir, sacrificando algumas bactérias para salvar a maioria da população.

Esta estratégia é diferente dos sistemas imunitários bacterianos clássicos, como os sistemas de modificação de restrição que apagam o ADN do fago à medida que este entra nas células.

David Adams, primeiro autor do estudo, afirma que “em vez disso, impede o fago de se replicar, mas só depois de já ter sequestrado a maquinaria celular da bactéria da cólera, bloqueando efetivamente as bactérias infetadas num impasse – mas, pelo menos, o fago não se propaga”.

Segundo a Scientific Inquirer, dois outros sistemas, GrwAB e VcSduA, contribuem com funções de proteção distintas.

O GrwAB tem como alvo os fagos com ADN quimicamente modificado, uma estratégia utilizada pelos fagos para camuflarem os seus genomas e escaparem a outros sistemas imunitários bacterianos.

A VcSduA, por outro lado, atua contra diferentes famílias de vírus, incluindo outro “vibriófago” comum, oferecendo uma proteção em camadas que alarga o espetro de resistência.

Essencialmente, a linhagem WASA da bactéria da cólera alberga um arsenal alargado de sistemas de defesa anti-fagos, o que lhe permite neutralizar uma vasta gama de bacteriófagos, para além da proteção contra o seu principal fago predador, o ICP1.

Compreender como é que as bactérias resistem aos fagos é crucial, especialmente porque o interesse na terapia com fagos, ressurgiu como uma alternativa ao tratamento com antibióticos.

Se bactérias como a V. cholerae puderem adquirir um maior potencial de transmissão através da obtenção de defesas virais, isso pode reformular a forma como abordamos o controlo, a monitorização e o tratamento da cólera.

José Costa, ZAP //

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