Uma equipa de paleontólogos (ou, como se apresentam, CSIs do Miocénico), recriou os últimos momentos de um animal parecido com o peixe-boi dos nossos tempos — que foi comido por um réptil crocodiliano ancestral e por um extinto tubarão-tigre.
O ciclo da vida é belo e macabro — por vezes tão macabro que torna o registo fóssil verdadeiramente sinistro, mesmo milhões de anos após um evento.
Foi o que aconteceu com um antigo animal parecido com o peixe-boi, cujos restos mortais foram descobertos no oeste da Venezuela em 2019.
O espécime não atraiu muito interesse no início; não está particularmente bem preservado.
Mas quando os cientistas olharam mais de perto, perceberam que as partes do crânio e as vértebras da criatura estavam repletas de marcas de mordidas de duas bocas muito diferentes.
“Assim que se começa a olhar para os pormenores, percebe-se que há algo de muito especial no animal”, diz Aldo Benites-Palomino, estudante de doutoramento em paleontologia da Universidade de Zurique, citado pela Scientific American.
Benites-Palomino é o primeiro autor de um artigo científico, publicado a semana passada no Journal of Vertebrate Paleontology, que relata a descoberta.
Os autores do estudo usaram as provas fossilizadas de violência para começar a reconstituir a forma como as espécies interagiam nesta região pouco estudada da América do Sul.
“As marcas de mordidelas são muito interessantes de estudar porque não nos sentimos como paleontólogos, mas sim como especialistas forenses“, afirma Benites-Palomino.
Assim sendo, eis a “reconstituição do crime”:
Vítima: uma vaca marinha, do género Culebratherium – talvez com 3 metros de comprimento, embora o fóssil não esteja suficientemente bem preservado para os investigadores terem a certeza.
Hora da morte: entre o início e o meio do Miocénico, há 23 milhões e 11,6 milhões de anos.
Local do crime: uma antiga linha costeira de água salobra e florestas semelhantes a mangais.
Benites-Palomino e os colegas começaram a sua investigação identificando três tipos diferentes de mordidelas nos ossos fossilizados.
Um tipo de marca de mordidela deixou pequenas marcas circulares no osso da vaca marinha. Outro deixou buracos profundos e redondos com uma incisão a sair deles. E ainda outro deixou marcas estreitas, semelhantes a fendas, com impressões triangulares.
Havia ainda o que a paleontóloga Sally Walker, da Universidade da Geórgia, que não esteve envolvida na nova investigação, chama de “dente fumegante”: um dente fossilizado encontrado incrustado no fóssil entre o pescoço e a caixa torácica da vaca marinha.
O dente perdido, de um tubarão-tigre extinto chamado Galeocerdo aduncus, sugere que as marcas em forma de fenda foram deixadas pelo mesmo tubarão que se alimentava dos restos da vaca marinha, dizem os autores do estudo.
Este tipo de limpeza é também provavelmente a razão pela qual o esqueleto está tão fragmentado: os predadores provavelmente arrancaram desordenadamente pedaços da carcaça e levaram-nos.
No entanto, Walker diz que gostaria de ver provas de que os dentes de tubarão são invulgares na zona para excluir a hipótese de se tratar de um achado casual.
Benites-Palomino e os colegas atribuíram os dois primeiros tipos de marcas de dentadas a algum tipo de crocodiliano — embora apontar o dedo a uma espécie suspeita específica seja complicado, diz o paleontólogo.
Na altura, a região era o que chama “um paraíso para os crocodilianos“, e os membros desta ordem têm frequentemente dentes de tamanho semelhante, mesmo quando o tamanho do corpo varia.
“A menos que se trate de algo gigantesco ou minúsculo, é muito difícil identificar a espécie que estava a morder”, diz Benites-Palomino.
Os investigadores sugerem que o crocodiliano começou por atacar o focinho da vaca marinha, deixando pequenas marcas circulares; depois, agarrou o animal e usou a sua cauda para fazer rodopiar o corpo e rasgar o animal, no que os cientistas chamam um “rolo da morte“.
O rolo da morte é uma tática comum a quase todos os crocodilianos modernos, diz Stephanie Drumheller, paleontóloga da Universidade do Tennessee, em Knoxville, que não esteve envolvida no estudo.
Apesar de ser uma técnica plausível para um crocodiliano antigo ter usado, Drumheller não está convencida de que o comportamento esteja ligado às marcas de mordida curvas tão fortemente quanto os pesquisadores sugerem. ”
“Associar as marcas de mordidas especificamente com o rolar da morte, não me sinto confortável com isso”, diz a paleontóloga. “Não é uma relação direta e clara“.
O que quer que seja que tenha acontecido exatamente à infeliz criatura há milhões de anos, o seu destino revela a complexidade do seu ecossistema e é um lembrete convincente, dizem os três cientistas, de que as antigas teias alimentares eram tão complexas como as modernas.
“As marcas de dentadas dão-nos uma janela espantosa para as teias alimentares destes ecossistemas extintos”, conclui Drumheller.