As grutas das Selvagens podem ter vista para Marte

Robbie Shone / ESA

A microbióloga Ana Zelia Miller, investigadora da U.Évora, e o astronauta Matthias Mauer, da ESA

Projeto Microceno, liderado pela investigadora Ana Zélia Miller, estudou pela primeira vez a biosfera subterrânea das Ilhas Selvagens. Com características geológicas semelhantes às de Marte, as ilhas e as suas grutas “podem ser consideradas como potenciais análogos de Marte”.

Chegar às Ilhas Selvagens não é fácil; visitá-las, menos ainda. Para lá ir é preciso uma autorização prévia, seja por lazer ou por razões científicas.

Talvez por isso se encontrem “muito bem preservadas da influência humana”, tanto pelo seu isolamento como pela sua localização, como diz Ana Zélia Miller. E talvez por isso, também, as suas grutas contem a história da vida na Terra, dando dicas sobre Marte.

A microbióloga e investigadora da Universidade de Évora liderou, em julho de 2021, o projeto Microceno, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), que teve como objetivo estudar, pela primeira vez, a microbiologia e mineralogia das grutas vulcânicas terrestres e marinhas daquelas ilhas.

Meio século antes, em 1971, as Selvagens passaram a estar sob a administração territorial da Região Autónoma da Madeira. No mesmo ano, tornaram-se na primeira Reserva a nível nacional, estando o Instituto das Florestas e Conservação da Natureza, IP-RAM, responsável pela sua gestão e proteção.

Desbravando as grutas das Selvagens, que tão inalcançáveis parecem ser, reúnem-se informações que poderão ser úteis para abrir caminho para outras paragens para lá da órbita terrestre. É que as ilhas “podem ser consideradas como potenciais análogos de Marte”.

Não é que o planeta vermelho caiba inteiro nas rochosas ilhas do arquipélago da Madeira, “mas a exploração de grutas formadas em cenários vulcânicos na Terra” pode dar pistas sobre “grutas planetárias desenvolvidas em terrenos semelhantes”, como o de Marte ou até da Lua.

A “descoberta de tubos de lava” nos dois locais suscitou o interesse da comunidade científica nas grutas vulcânicas do nosso planeta.

Estes ambientes subterrâneos “podem albergar microrganismos” com caraterísticas únicas, “com um papel importante nos ciclos biogeoquímicos e em processos de biomineralização” — que, por sua vez, “podem ter aplicações importantes para a astrobiologia e a explicação da origem e evolução da vida na Terra”, explica Ana Zélia Miller.

Além do fator grutas vulcânicas, há outros motivos para se olhar para as Ilhas Selvagens como local de experiências análogas.

A “geologia e localização numa zona de movimento lento de placas tectónicas” assemelham-se “aos processos geológicos que ocorrem no planeta vermelho, onde não há deriva continental”.

Contribuem para esta comparação “o tipo de vulcanismo, as taxas de efusão e a geoquímica” das ilhas, características que se encontram ainda na Madeira e nas Canárias, acrescenta Miller.

Descobertas subterrâneas

Para melhor estudar os microrganismos que crescem nestas grutas, foi constituída uma equipa internacional e multidisciplinar.

“O projeto Microceno perpassa diversas áreas do conhecimento, nomeadamente a geomicrobiologia, a biogeoquímica, a astrobiologia, a exploração planetária, alterações climáticas e biotecnologia”, lista a investigadora.

Não é de estranhar que 17 investigadores e especialistas de sete países (Portugal, Espanha, Itália, Inglaterra, Rússia, Holanda e Canadá) se tenham empenhado nesta expedição pelas Selvagens, que constituem um “laboratório natural excecional”. A aventura despertou, inclusive, a atenção da National Geographic.

Coube-lhes estudar “pela primeira vez a biosfera subterrânea destas ilhas, ainda desconhecida para a ciência e para a sociedade”.

A investigadora destaca a participação dos geólogos italianos Francesco Sauro e Matteo Massironi, “implicados no estudo da génese destas cavidades”, de Samuel Payler, astrobiólogo da Agência Espacial Europeia (ESA), e Sergei Kud-Sverchkov, cosmonauta da Agência Espacial Russa (Roscomos).

A equipa acampou na ilha e lá ergueu um laboratório. Os resultados preliminares “foram bastante promissores”: “Foi descoberta uma nova gruta, localizada a Norte da Ilha Selvagem Grande, à qual se deu o nome de Sopro do Dragão”, conta a líder do projeto Microceno.

Além disso, “observações ao microscópio electrónico de varrimento” e “análises de ADN in situ” permitiram identificar, em menos de 24 horas, “uma grande variedade de microrganismos capazes de interagir com os minerais”.

Um desses exemplos são as “bactérias quimiolitoautotróficas”, que poderão vir a “ser utilizadas como modelos para a procura de vida microbiana passada que poderá ter existido nas grutas vulcânicas de Marte”.

Replicando uma futura missão ao planeta vermelho, a equipa muniu-se de “tecnologia de ponta portátil que poderia ser utilizada em futuras missões tripuladas a Marte para a exploração de grutas vulcânicas e a detecção de vida microbiana”.

O acesso às Selvagens não é fácil, mas para lá seguiram drones, um scanner laser portátil “para o mapeamento tridimensional” das grutas, técnicas de extração e análise de ADN in situ, incluindo um sequenciador portátil, um equipamento de fluorescência de raios-x para a caracterização elemental das rochas e minerais”.

Houve ainda espaço para um microscópio electrónico de varrimento portátil, tendo sido esta “a primeira vez que se instalou um equipamento deste tipo num local remoto”.

Dando pistas para Marte, estas grutas não se encerram em si mesmas. Aquele que é “um dos últimos ecossistemas vulcânicos intactos do Atlântico Norte” pode permitir que se saiba mais sobre a adaptação e evolução da vida microbiana, tão importante para “quase todos os processos biológicos” do nosso planeta.

Além disso, e uma vez que não se pode separar a origem da vida dos ambientes vulcânicos, estudar estas regiões “pode ter significado para a astrobiologia e para futuras explorações planetárias”.

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