Descobertos poços submersos que condizem com as “rotas do sonho” cantadas pelas Primeiras Nações

Wentworth Galleries

O povo aborígene esforça-se por contar histórias que refletem a sua cultura através da pintura.

Trilhos descritos pelos aborígenes australianos compõem percursos ancestrais que mapeiam a jornada dos seres espirituais e criadores durante o “Tempo do Sonho”, uma era mítica que remete à formação do mundo e das suas criaturas.

Antigos poços submersos, descobertos ao largo da costa australiana, condizem com as chamadas “songlines” (também conhecidas como linhas ou rotas do sonho), uma forma de tradição oral utilizada pelos povos das Primeiras Nações para navegar na paisagem do continente australiano.

Estes trilhos, que atravessam o país inteiro, combinam a narração de histórias com a navegação e mitologia e são fundamentais na cultura dos povos aborígenes australianos —  os habitantes originais do continente australiano.

As milhares de rotas “mágicas”, que se estendem por vezes ao longo de centenas de quilómetros, compõem percursos ancestrais que mapeiam a jornada dos seres espirituais e criadores durante o “Tempo do Sonho”, uma era mítica que remete à formação do mundo e das suas criaturas.

A saga das Sete Irmãs talvez seja a mais famosa “songline” até hoje. Nela, um vilão que muda de forma e persegue pelo céu noturno do continente as irmãs, representadas pelas sete estrelas que compõem as Plêiades. A música que compõe o conto descreve detalhadamente a paisagem ao longo da perseguição.

Mas tal como os “trilhos do canto”, a nova descoberta também conta uma história fascinante.

Enquanto mostrava a anciãos das Primeiras Nações australianas um modelo digital dos locais antigos que descobriu na costa, o geólogo marinho Mick O’Leary foi interrompido por um dos anciãos que parecia demasiado entusiasmado.

Ao olhar para estes locais nunca antes desvendados pela Ciência, Timmy Douglas, ancião de mais de 90 anos, rapidamente se lembrou de uma “songline” — provavelmente com mais de sete mil anos — que conhecia desde pequeno. A descrição da canção indígena condizia com o local submerso.

Onde a Ciência e os primeiros povos se cruzam

A área em questão, agora conhecida como “Sea Country”, era anteriormente terra seca a mais de 100 quilómetros no interior.

“É o sítio de arqueologia subaquática mais antigo da Austrália,” afirma Jonathan Benjamin, um arqueólogo da Universidade de Flinders na Austrália, e primeiro autor de um estudo publicado este ano na Quaternary Science Reviews que descreve a descoberta e sublinha a dificuldade em mergulhar no local, onde as correntes passam diretamente.

Dentro dos poços foram descobertas ferramentas de pedra, bem como mais de um milhão de gravuras rupestres antigas na área que ilustram a fusão de métodos científicos modernos e conhecimento indígena.

Jonathan Benjamin et al., in Quaternary Science Reviews

Artefato lítico encontrado no fundo do mar.

A análise geoquímica das ferramentas de pedra pode vir a revelar os movimentos dos fabricantes das ferramentas, enquanto a análise de resíduos pode trazer conhecimentos sobre a sua utilização, sublinha o Scientific American. Já as gravuras relatam a adaptação dos habitantes às mudanças ambientais — uma mudança no estilo de vida e na fauna correspondente ao aumento dos níveis do mar.

Essa análise pode vir a ser bastante reveladora, diz Wendy Reynen, uma especialista em ferramentas de pedra que participou no estudo. “Se estiver a esfolar um canguru, pode obter fragmentos minúsculos, microscópicos, de osso, sangue e pele,” afirma. “Isso poderia dizer-nos o que é que as pessoas estavam a fazer com essa ferramenta de pedra específica.”

A pesquisa vem, de certa forma, validar a importância cultural destas fantásticas “rotas do sonho”, compostas por uma série de canções que descrevem a paisagem e os eventos ocorridos durante o “Tempo do Sonho”, um termo usado para representar conceitos aborígenes de Everywhen, durante os quais a Terra era habitada por figuras ancestrais, muitas vezes de proporções heroicas ou com habilidades sobrenaturais.

“Ninguém [fora dos povos das Primeiras Nações] pensava em sítios indígenas antes, ou aqueles que pensavam eram informados: ‘Sim, é possível que existam, mas não se pode focar em nada que seja possível e não comprovado,’” lembra Benjamin. “Então passámos de possível para comprovado, e a narrativa está absolutamente a mudar.”

“Pense nisso como o Google Maps, mas tudo na sua mente”. É assim que O’Leary descreve os trilhos cantados pelas Primeiras Nações. Guiavam os viajantes através do terreno e indicavam marcos geográficos, fontes de água e locais sagrados. Essencialmente, as “songlines” são uma fusão de música, dança, arte e narrativa, que unidas transmitem conhecimento ancestral, leis e crenças espirituais.

Importantes para a identidade dos povos aborígenes, as “rotas do sonho” também desempenham um papel significativo na manutenção das línguas e dialetos locais, muitos dos quais ameaçados de extinção.

Estes dialetos são passados de geração em geração, mantendo viva a ligação entre o povo e a terra. São, portanto, mais do que meros caminhos físicos; representam viagens espirituais e culturais, profundamente enraizadas na terra e na história dos aborígenes australianos.

“Agora realmente vemos que é necessário entrelaçar a ciência ocidental e o conhecimento indígena, trançá-los juntos, para que não seja feito como duas coisas separadas,” diz O’Leary. “Quando estas coisas são sobrepostas, obtém-se uma imagem mais holística do Sea Country.”

Tomás Guimarães, ZAP //

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