“Ameaça existencial” para a big tech. O Supremo dos EUA pode mudar a internet para sempre

Em causa estão processos que podem retirar protecções legais às plataformas e responsabilizá-las pelos conteúdos partilhados pelos utilizadores e que lhes são recomendados.

O actual mandato do Supremo Tribunal dos Estados Unidos será decisivo para o futuro da democracia no país, mas a internet como a conhecemos também pode vir a sofrer grandes mudanças fruto da decisão dos juízes.

A porta foi aberta pelo Supremo no início de Outubro, quando os magistrados aceitaram ouvir casos sobre as protecções legais de que as redes sociais beneficiam e sobre o seu poder sobre os conteúdos que nelas circulam.

Um dos processos em causa é o Gonzalez vs. Google, o primeiro caso a ser ouvido pelo Supremo que tem por base a secção 230 — uma lei anteriormente obscura que agora é creditada por ter “criado a internet”.

A secção 230 entrou em vigor em 1996 e determina que as empresas por trás das redes sociais não são “tratadas como as publicadoras” dos conteúdos criados por uma terceira parte. Ou seja, as empresas como o Facebook, o Google ou o Twitter não podem ser responsabilizadas pelos conteúdos que os utilizadores lá publicam.

A lei tem como objectivo proteger estas plataformas de serem alvos constantes de processos de difamação e dá-lhes na mesma poder para removerem conteúdos que violem os seus termos e condições.

A provisão não deixa de ser controversa, já que está por trás de muitas das questões mais polémicas em torno da internet hoje em dia — até que nível podem as empresas fechar aos olhos aos contéudos nocivos que circulam nas suas plataformas, como desinformação sobre questões de saúde ou fake news? E se decidirem censurar, que critérios são usados e qual o impacto na liberdade de expressão?

O caso que vai agora responder a estas dúvidas nasceu após a jovem Nohemi Gonzalez ter sido assassinada por um dos ataques terroristas do Estado Islâmico em Paris. A família da vítima alega que o Google violou o Acto Anti-Terrorismo norte-americano ao permitir que a organização terrorista partilhasse os seus conteúdos no YouTube e ao os recomendar aos seus utilizadores.

Os dois tribunais federais que já decidiram sobre o caso consideraram que a secção 230 dava imunidade ao Google sobre quaisquer violações do Acto Anti-Terrorismo. No entanto, uma decisão do tribunal de recurso do nono circuito, também relacionada com a secção 230, interpretou a lei de forma mais restrita.

Assim, as decisões em processos deste género podem variar dependendo da zona dos Estados Unidos onde se vive, o que contradiz o direito à igualdade expresso na lei. Por esta razão, o Supremo vai decidir sobre o caso de forma a que seja criado um precedente a nível federal que deve ser aplicado a todos os casos semelhantes.

Para além da decisão sobre se as recomendações feitas pelas plataformas são imunes ao abrigo da secção 230, há ainda um segundo caso que exige uma maior responsabilização do Twitter sobre a difusão de conteúdos de organizações terroristas na sua plataforma.

Um terceiro caso, que ainda não foi aceite, partiu do pedido das próprias plataformas e contesta as leis estaduais no Texas e na Flórida, que impedem as empresas tecnológicas de apagar conteúdos que violem os termos e condições.

Caso o Supremo defenda a interpretação mais alagarda das protecções que a secção 230 dá às plataformas, estará a incentivar uma menor regulação dos conteúdos que circulam online.

Os defensores desta posição argumentam que limitar as protecções legais dadas às empresas vai levar a que as plataformas simplesmente decidam banir todos os conteúdos que possam ser minimamente controversos de forma a não arriscarem ser processadas, especialmente tendo em conta os milhões de utilizadores que têm, o que practicamente impossibilita a moderação de cada publicação de forma individual.

Isto, argumentam, levaria a que se perdesse uma fatia significativa das discussões online, mesmo quando estas são produtivas e positivas, e poria em causa a subsistência de media e vozes alternativas que operem nas redes sociais.

Por outro lado, os defensores de uma interpretação mais apertada da lei acreditam que, se a protecção legal era precisa quando a internet nasceu e tinha menos utilizadores, esta deixou de fazer sentido à medida que as redes sociais ganharam popularidade e se tornaram tão influentes na nossa sociedade.

As regulações mais restritas são assim necessárias para que as empresas não fujam às suas responsabilidades sociais. As denúncias de Frances Haugen dão força a esta posição, com a ex-funcionária do Facebook a acusar a empresa de “colocar vidas em risco“, de contribuir para o ataque ao Capitólio ao permitir a circulação de notícias falsas e de priorizar os lucros em vez da segurança.

As decisões do Supremo podem marcar o início de uma nova realidade na internet e podem revolucionar a forma como as plataformas operam hoje em dia.

De acordo com Ryan Calo, professor de direito da Universidade de Washington, as gigantes tecnológicas vão ver este caso “potencialmente como uma ameaça existencial“, revela à NBC.

“No mínimo, terão de ser muito, muito mais cuidadosos sobre o que permitem nas suas plataformas, ou muito, muio mais cuidadosos sobre o que deixam os seus algoritmos recomendar às pessoas”, remata.

Adriana Peixoto, ZAP //

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