Ray Troll

Equipa da U. Washington identificou dentes no tenáculo de um tubarão-fantasma adulto macho, aqui ilustrado pelo artista Ray Troll
Quando se fala de dentes, os vertebrados partilham muito entre si. Qualquer que seja a forma, tamanho ou acutilância, os dentes têm origens genéticas semelhantes, características físicas próximas e, claro, um lugar habitual: a mandíbula. Quase sempre.
Um novo estudo, conduzido por cientistas da Universidade de Washington e da Universidade da Florida, nos Estados Unidos, vêm agora colocar em causa a suposição de que os dentes só existem na boca.
De acordo com o estudo, publicado na quinta-feira na Proceedings of the National Academy of Sciences, os “tubarões fantasma” (Hydrolagus colliei) têm filas de dentes no topo da cabeça, alinhadas numa excrescência cartilaginosa chamada tenáculo, que se assemelha vagamente a um nariz.
A misteriosa espécie, nativa do Pacífico Nordeste e da família dos quimerídeos, próxima dos tubarões, usa aparentemente os seus dentes extra para acasalar.
Há muito que os investigadores especulam sobre a origem dos dentes, estruturas tão vitais à sobrevivência e à evolução que raramente paramos para pensar nelas.
O debate, porém, sempre se centrou nos dentes presentes nas mandíbulas, sem considerar a possibilidade de existirem noutras partes do corpo.
Com a descoberta de dentes no tenáculo, os cientistas perguntam-se agora onde mais poderão surgir e de que forma isso poderá alterar a história da evolução dos dentes.
Jacqui Engel / University of Washington

Exemplar de tubarão-fantasma (Hydrolagus colliei)
“Esta característica absolutamente espetacular desafia uma suposição de longa data na biologia evolutiva: a de que os dentes são estritamente estruturas orais”, afirma Karly Cohen, investigadora da Universidade de Washington e primeira autora do estudo, em comunicado da universidade.
“O tenáculo é um vestígio de desenvolvimento, não uma aberração, e o primeiro exemplo claro de uma estrutura dentada fora da mandíbula.”
Os “tubarões fantasma”, como lhe chamou em 2023 o investigador da Universidade da Flórida e autor principal do estudo, Gareth Fraser, pertencem à categoria das quimeras, peixes cartilagíneos que divergiram dos tubarões na árvore evolutiva há milhões de anos.
Medem cerca de 60 centímetros e devem o seu nome em inglês, spotted ratfish (“peixe-rato manchado”) à longa e delgada cauda malhada que corresponde a metade do seu comprimento.
Apenas os machos adultos apresentam um tenáculo na testa. Em repouso, parece um pequeno amendoim branco entre os olhos. Quando ereto, o tenáculo torna-se curvo e pontiagudo, revestido de dentes.
Os machos exibem o tenáculo para intimidar rivais e, durante o acasalamento, usam-no para segurar a fêmea pela barbatana peitoral e evitar afastarem-se.
“Os tubarões não têm braços, mas precisam de acasalar debaixo de água”, explicou Cohen. “Por isso, muitos desenvolveram estruturas de preensão que lhes permitem manter contacto com o parceiro durante a reprodução.”
“Os Hydrolagus colliei têm caras mesmo estranhas”, comentou Karly Cohen. “Quando são pequenos, parecem um elefante espalmado dentro de um saco vitelino.”
As células que formam a região oral encontram-se mais dispersas, o que torna plausível que, em algum momento, um grupo de células responsáveis pela formação dentária tenha migrado para a cabeça e ali permanecido.
Para testar estas hipóteses, os investigadores capturaram e analisaram centenas de exemplares, utilizando microtomografias e amostras de tecido para documentar o desenvolvimento do tenáculo.
Enquanto os tubarões são difíceis de estudar, os H.colliei abundam em Puget Sound e frequentam as águas pouco profundas junto dos Friday Harbor Labs, na ilha de San Juan.
Os cientistas compararam ainda exemplares modernos com fósseis ancestrais. As análises revelaram que tanto machos como fêmeas iniciam a formação do tenáculo desde cedo.
Nos machos, o processo começa com um pequeno aglomerado de células que dá origem a uma protuberância branca entre os olhos. Esta liga-se a músculos da mandíbula, rompe a pele e, por fim, gera dentes. Nas fêmeas, esta estrutura nunca chega a mineralizar, mas permanecem vestígios iniciais.
Os novos dentes estão enraizados numa faixa de tecido chamada lâmina dentária, presente na mandíbula mas nunca antes documentada noutras regiões. “Quando vimos a lâmina dentária pela primeira vez, ficámos boquiabertos”, conta Cohen. “Foi emocionante encontrar esta estrutura crucial fora da mandíbula.”
Nos humanos, a lâmina dentária desaparece depois do crescimento da dentição definitiva, mas muitos vertebrados mantêm a capacidade de substituir os dentes.
Os tubarões, por exemplo, têm “uma autêntica passadeira rolante” de dentes novos, explicou Cohen. Já os dentículos dérmicos, incluindo os presentes nos claspers das spotted ratfish, não têm lâmina dentária.
A identificação desta estrutura foi uma prova sólida de que os dentes do tenáculo são realmente dentes, e não dentículos residuais. Evidências genéticas reforçaram a conclusão.
As amostras de tecido mostraram que os genes associados à dentição nos vertebrados eram expressos no tenáculo, mas não nos dentículos. Nos fósseis, os investigadores também encontraram indícios de dentes no tenáculo de espécies aparentadas.
“Temos aqui uma combinação de dados experimentais e de evidência paleontológica que demonstra como estes peixes reaproveitaram instruções genéticas pré-existentes para o fabrico de dentes, para criar um novo dispositivo essencial à reprodução”, afirmou Michael Coates, diretor do departamento de biologia e anatomia da Universidade de Chicago e coautor do estudo.
“Se estas quimeras estranhas têm dentes na testa, isso obriga-nos a repensar o dinamismo do desenvolvimento dentário em geral”, diz Gareth Fraser, professor de biologia na Universidade da Florida e autor sénior do estudo.
“As quimeras oferecem-nos um raro vislumbre do passado. Quanto mais olharmos para estruturas espinhosas em vertebrados, mais dentes encontraremos fora da mandíbula”, conclui Karly Cohen.