Uma equipa de astrónomos desenleou uma colisão confusa entre dois enormes enxames de galáxias, na qual as vastas nuvens de matéria escura dos enxames se separaram da chamada matéria normal.
Os dois enxames contêm cada um milhares de galáxias e estão situados a milhares de milhões de anos-luz da Terra.
Ao atravessarem-se um pelo outro, a matéria escura — uma substância invisível que sente a força da gravidade, mas não emite luz — passou à frente da matéria normal.
As novas observações são as primeiras a sondar diretamente a dissociação das velocidades da matéria escura e da matéria normal.
Os enxames de galáxias estão entre as maiores estruturas do Universo, coladas umas às outras pela força da gravidade. Apenas 15% da massa desses enxames é matéria normal, a mesma matéria que constitui os planetas, as pessoas e tudo o que vemos à nossa volta.
Desta matéria normal, a grande maioria é gás quente, enquanto o resto são estrelas e planetas. Os restantes 85% da massa do enxame corresponde à matéria escura.
Durante a luta que ocorreu entre os enxames, conhecidos coletivamente como MACS J0018.5+1626, as galáxias individuais saíram praticamente ilesas porque existe muito espaço entre elas.
Mas quando as enormes reservas de gás entre as galáxias (a matéria normal) colidiram, o gás tornou-se turbulento e sobreaquecido.
Embora toda a matéria, incluindo a matéria normal e a matéria escura, interaja através da gravidade, a matéria normal também interage através do eletromagnetismo, que a torna mais lenta durante uma colisão. Assim, enquanto a matéria normal ficou atolada, as “poças” de matéria escura dentro de cada enxame navegaram em frente.
Imagine uma colisão massiva entre vários camiões basculantes que transportam areia, sugere Emily Silich, autora principal de um novo estudo que descreve os resultados na revista The Astrophysical Journal.
“A matéria escura é como a areia e voa em frente“. Silich é estudante de pós-graduação que trabalha com Jack Sayers, professor investigador de física no Caltech e investigador principal do estudo.
Algumas das observações foram efetuadas há décadas, enquanto a análise completa utilizando todos os conjuntos de dados teve lugar nos últimos dois anos.
Esta dissociação entre a matéria escura e a matéria normal já foi observada anteriormente, sendo a mais famosa a do Enxame Bullet. Nessa colisão, o gás quente pode ser visto claramente a ficar atrás da matéria escura, depois dos dois enxames de galáxias se terem atravessado um ao outro.
A situação que ocorreu em MACS J0018.5+1626 (referido subsequentemente como MACS J0018.5) é semelhante, mas a orientação da fusão girou cerca de 90 graus em relação à do Enxame Bullet.
Por outras palavras, um dos enxames massivos de MACS J0018.5 está a voar quase a direito em direção à Terra, enquanto o outro está a afastar-se.
Esta orientação deu aos investigadores um ponto de vantagem único que lhes permite, pela primeira vez, mapear a velocidade da matéria escura e da matéria normal e elucidar a forma como estas se separam uma da outra durante a colisão de enxames de galáxias.
“Com o Enxame Bullet, é como se estivéssemos sentados numa bancada a assistir a uma corrida de automóveis e conseguíssemos captar belos instantâneos dos carros que se movem da esquerda para a direita”, diz Sayers.
“No nosso caso, é mais como se estivéssemos na reta da meta com uma pistola de radar, parados à frente de um carro que vem na nossa direção e conseguíssemos obter a sua velocidade“, acrescenta.
Para medir a velocidade da matéria normal, ou gás, no enxame, os cientistas usaram um método de observação conhecido como efeito cinético Sunyaev-Zel’dovich (ou efeito SZ).
Sayers e os seus colegas fizeram a primeira deteção observacional do efeito cinético SZ num objeto cósmico individual, um enxame de galáxias chamado MACS J0717, em 2013, utilizando dados do CSO (as primeiras observações do efeito SZ feitas de MACS J0018.5 datam de 2006).
O efeito cinético SZ ocorre quando os fotões do início do Universo, a radiação cósmica de fundo em micro-ondas, se dispersam nos eletrões do gás quente a caminho da Terra.
Os fotões sofrem um desvio, o chamado efeito Doppler, devido aos movimentos dos eletrões nas nuvens de gás ao longo da nossa linha de visão. Medindo a mudança de brilho da radiação cósmica de fundo em micro-ondas devido a este efeito, os investigadores podem determinar a velocidade das nuvens de gás dentro dos enxames de galáxias.
“Os efeitos Sunyaev-Zeldovich eram ainda uma ferramenta de observação muito recente quando eu e Jack virámos a nova câmara do CSO para os enxames de galáxias em 2006, e não fazíamos ideia de que haveria descobertas como esta”, diz Sunil Golwala, professor de física e orientador de doutoramento de Silich.
“Aguardamos com expetativa uma série de novas surpresas quando colocarmos os instrumentos de próxima geração no telescópio na sua nova casa no Chile”, acrescenta a investigadora.
Em 2019, os investigadores tinham efetuado estas medições do efeito cinético SZ em vários enxames de galáxias, o que lhes indicava a velocidade do gás, ou matéria normal.
Os investigadores usaram o Observatório W.M. Keck, em Maunakea, para conhecer a velocidade das galáxias no enxame, o que lhes indicou, por aproximação, a velocidade da matéria escura (porque a matéria escura e as galáxias se comportam de forma semelhante durante a colisão).
Mas, nesta fase da investigação, a equipa tinha um conhecimento limitado das orientações dos enxames. Sabiam apenas que um deles, MACS J0018.5, apresentava sinais de algo estranho – o gás quente, ou matéria normal, viajava na direção oposta à da matéria escura.
“Tínhamos esta ‘coisa’ estranha com velocidades em direções opostas e, no início, pensámos que poderia ser um problema com os nossos dados. Mesmo os nossos colegas que simulam enxames de galáxias não sabiam o que se estava a passar”, diz Sayers. “Depois, a Emily envolveu-se e desenleou tudo“.
Como parte da sua tese de doutoramento, Silich debruçou-se sobre o enigma de MACS J0018.5. Recorreu a dados do Observatório de raios-X Chandra para revelar a temperatura e a localização do gás nos enxames, bem como o grau em que o gás estava a sofrer choques.
“Estas colisões de enxames são os fenómenos mais energéticos desde o Big Bang”, diz Silich. “O Chandra mede as temperaturas extremas do gás e diz-nos qual a idade da fusão e quão recentemente os enxames colidiram.”
A equipa também trabalhou com Adi Zitrin, da Universidade Ben-Gurion do Negev, em Israel, para usar os dados do Hubble para mapear a matéria escura usando um método conhecido como lente gravitacional.
Adicionalmente, John ZuHone, do Centro de Astrofísica | Harvard & Smithsonian, ajudou a equipa a simular a destruição do enxame.
Estas simulações foram usadas em combinação com os dados dos vários telescópios para determinar a geometria e a fase evolutiva do encontro entre os enxames.
Os cientistas descobriram que, antes de colidirem, os enxames estavam a mover-se um para o outro a cerca de 3000 quilómetros/segundo, o que equivale a cerca de um por cento da velocidade da luz.
Com uma imagem mais completa do que se estava a passar, os investigadores conseguiram perceber porque é que a matéria escura e a matéria normal pareciam estar a viajar em direções opostas.
Embora os cientistas digam que é difícil de visualizar, a orientação da colisão, juntamente com o facto da matéria escura e da matéria normal se terem separado uma da outra, explica as estranhas medições de velocidade.
No futuro, os investigadores esperam que mais estudos como este conduzam a novas pistas sobre a misteriosa natureza da matéria escura.
“Este estudo é um ponto de partida para estudos mais pormenorizados sobre a natureza da matéria escura”, diz Silich. “Temos um novo tipo de sonda direta que mostra como a matéria escura se comporta de forma diferente da matéria normal”.
Sayers, que se lembra de ter recolhido pela primeira vez os dados do CSO sobre este objeto há quase 20 anos, diz: “Demorámos muito tempo a juntar todas as peças do puzzle, mas agora sabemos finalmente o que se passa. Esperamos que isto conduza a uma forma totalmente nova de estudar a matéria escura nos enxames”.
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