Lucy, a bisavó de todos os humanos, andava basicamente nua (e não tinha vergonha)

A. Czekaj, A. Pękalski / Uniwersytet Jagielloński; Gabriel Vinas

Lucy, segundo os investigadores polacos A. Czekaj e A. Pękalski (esq) e o escultor cubano Gabriel Vinas (dir)

Estudos recentes sugerem que Lucy, a Australopithecus afarensis que é considerada o antepassado comum de todos os hominídeos, pode ter sido muito menos peluda do que se imaginava — e que os humanos demoraram 2,5 milhões de anos a ganhar vergonha de andarem nus.

A descoberta de Lucy, um hominídeo fossilizado com 3,2 milhões de anos, há cinquenta anos, ofereceu um vislumbre significativo da evolução humana.

Batizado com o nome da canção dos Beatles “Lucy in the Sky with Diamonds”, este espécime de Australopithecus afarensis com um cérebro meio primata, meio humano, tem sido celebrado como “a mãe de todos nós“.

No entanto, novas descobertas sugerem que a icónica Lucy pode ter sido muito menos peluda do que se imaginava, desafiando as nossas perceções dos primeiros antepassados humanos.

Tradicionalmente, Lucy tem sido retratada com um pelo espesso e castanho-avermelhado que cobre a maior parte do seu corpo, sendo apenas visíveis o rosto, as mãos, os pés e os seios.

No entanto,  avanços na análise genética indicam agora que Lucy pode ter estado quase nua, explica Stacy Keltner, investigadora da Kennesaw State University, num artigo no The Conversation.

Estudos sobre a coevolução dos piolhos humanos revelam que os nossos antepassados perderam a maior parte do pelo do corpo entre 3 a 4 milhões de anos atrás, muito antes de o vestuário se ter tornado comum há cerca de 83 000 a 170 000 anos.

Este facto sugere que, durante mais de 2,5 milhões de anos, os primeiros seres humanos, incluindo Lucy, estiveram essencialmente nus.

A. Czekaj, A. Pękalski / Uniwersytet Jagielloński

Lucy, segundo os investigadores polacos A. Czekaj e A. Pękalski

A perda de pêlos corporais nos primeiros seres humanos resultou provavelmente de vários fatores, incluindo a necessidade de termoregulação, o atraso no desenvolvimento fisiológico, a atração de parceiros sexuais e a defesa contra parasitas.

Estas mudanças evolutivas coincidiram com o crescimento do cérebro humano, que exige energia e cuidados significativos, levando a períodos alargados de criação dos filhos.

Pensa-se que estes cuidados prolongados encorajaram a união de pares, uma estratégia social em que um homem e uma mulher se associam para criar a descendência em conjunto.

No entanto, a união de pares em grupos sociais trazia o risco de infidelidade, o que poderia perturbar a criação dos filhos.

A nudez e a vergonha

O antropólogo evolucionista Daniel M.T. Fessler sugere que a evolução da vergonha desempenhou um papel crucial na manutenção das relações monogâmicas. A vergonha desencorajava a infidelidade, promovendo assim laços estáveis entre pares, necessários para a educação dos filhos.

O conceito de nudez e as suas implicações evoluíram significativamente ao longo do tempo. Na cultura moderna, é frequentemente associada à vergonha e às normas sociais.

O crítico de arte John Berger diferencia entre estar “nu”, que é simplesmente estar sem roupa, e “o nu”, uma representação artística concebida para agradar. Críticos feministas como Ruth Barcan defendem que a nudez nunca é neutra; está sempre carregada de significados e expectativas sociais.

As representações de Lucy reflectem muitas vezes os pressupostos modernos sobre os papéis dos géneros e as estruturas familiares. É frequentemente mostrada com expressões calorosas e protetoras, sozinha ou com um companheiro masculino e filhos, simbolizando a maternidade idealizada.

No entanto, estas representações podem dizer mais sobre os pontos de vista contemporâneos do que sobre a própria Lucy.

Em 2021, um estudo interdisciplinar conduzido por uma equipa de investigadores da qual fez parte o biólogo português Rui Diogo, investigador da Universidade de Washington, e o escultor cubano Gabriel Vinas, analisou os preconceitos nas reconstruções históricas dos primeiros seres humanos.

Segundo os autores do estudo, publicado na Frontiers in Ecology and Evolution, estas representações culminaram frequentemente num homem europeu branco, com características exageradas nos hominídeos femininos associadas a estereótipos raciais.

Ao reimaginar Lucy, é essencial ir além de visões desatualizadas e tendenciosas, diz  Stacy Keltner. Esse é o caso de “Santa Lucia“, obra de Gabriel Vinas que retrata Lucy como uma figura nua envolta em tecido translúcido, simbolizando as incertezas em torno da sua verdadeira aparência.

As visualizações dos nossos antepassados devem basear-se em provas científicas e não em preconceitos culturais e raciais. A verdadeira imagem de Lucy, quer esteja coberta de pelo ou não, desafia-nos a repensar a nossa compreensão da evolução humana e das construções sociais em torno da nudez e da vergonha.

Essencialmente, Lucy, como hominídeo quase nu, convida-nos a explorar a complexa interação entre biologia, cultura e normas sociais, incitando-nos a ver o nosso passado antigo com olhos novos e imparciais, conclui Keltner.

O papel da vergonha no click evolutivo que levou os humanos a usar roupas não é, no entanto, consensual, havendo cientistas que sustentam que o vestuário surgiu simplesmente da necessidade de proteção contra condições climatéricas adversas.

E, entre as muitas teorias que tentam explicar a extinção dos neandertais, há mesmo um estudo que sugere que, ao contrário dos homo sapiens, os nossos primos neanderthalensis não sabiam fazer roupas — e desapareceram porque não tinham agasalhos.

Armando Batista, ZAP //

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