Mary Shelley só conheceu a mãe no cemitério de St. Pancras, onde encontrava refúgio na sua lápide. Aí alimentou consumou a sua paixão literária e um grande amor que lhe deram a inspiração necessária para criar uma das obras mais marcantes da literatura gótica.
Pode-se dizer que parte da infame obra de Mary Shelley nasce da morte em 1831, fruto de uma relação da escritora com a mãe que só conheceu através de uma lápide.
Era no cemitério de St. Pancras, no centro de Londres, que descansava Mary Wollstonecraft Godwin, eterna feminista e mãe de Mary, vítima das mãos sujas do médico que lhe removeu a placenta e lhe deu uma febre puerperal fatal, dias depois do nascimento da criadora de Frankenstein.
Também era lá que uma jovem Mary passava o seu tempo depois de o seu pai assumir uma relação com outra mulher, considerada insuportável pela filha emprestada, segundo as memórias de Sandra M. Gilbert.
A campa da mãe dava-lhe o sossego necessário para pôr a leitura e escrita em dia, inspirada pelos afamados progenitores que partilhavam da profissão — especialmente por um pai que fomentava o seu amor pela literatura e pensamento intelectual.
Consumação em cima da campa?
Se já era um local de grande significado, o cemitério londrino ganhou pouco mais tarde uma importância adicional para Mary. Atraída pelo seu idealismo e aparência, Percy Shelley entraria na sua vida apesar da polémica diferença de idades e do casamento erguido do também escritor.
Seria na mesma casa de mortos que teriam lugar não só os seus primeiros passeios, mas também a declaração mútua do seu amor e mesmo a sua consumação que alegadamente pôs término à virgindade de Mary Shelley — que se crê ter tido lugar precisamente em cima da campa da “avó” de Frankenstein.
Se tal momento de ternura teve lugar sobre as ossadas da mãe foi talvez porque esta acreditava na conexão com os mortos através dos seus restos, crença que se torna evidente, segundo o Big Think, no seu “Ensaio sobre Sepulturas” (1809)
O “monstro” e a identidade de Mary num só
O local tornava-se um símbolo de conhecimento e conexão, que seria refletido na obra que tornou Mary Shelley numa figura literária.
Também na obra Victor Frankenstein explora cemitérios para examinar a vida e a morte, numa caminhada de criação de vida através do romance, em paralelo com a vida de uma Mary adolescente — tal como o “monstro” é construído através de pedaços de cadáveres, a identidade de Mary Shelley nasce da junção de fragmentos de conhecimento.
Alguns estudiosos interpretam “Frankenstein” como uma história de terror sobre a maternidade, enfatizando a conexão entre vida e morte, sexo e morte e a frágil linha entre elas.
A comunhão de Mary com os mortos, o amor no cemitério e a leitura como ressurreição elevam o romance para além do seu horror gótico, numa exploração da alma humana.