Medicamento pode ser usado no tratamento da obesidade, mas não para a perda de poucos quilos e de forma não acompanhada por profissionais de saúde.
Nos últimos meses, uma “canetinha” com agulha na ponta virou uma febre entre as pessoas que desejam emagrecer. Em publicações de redes sociais, celebridades e influenciadores digitais do mundo inteiro passaram a divulgar o Ozempic, medicamento desenvolvido pela farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk.
No princípio, a semaglutida — o nome científico da molécula — foi estudada e aprovada como um tratamento contra o diabetes. Mas rapidamente os cientistas começaram a observar um “efeito colateral” muito interessante dela: a perda de peso.
Foi assim que o Ozempic começou a ter o chamado uso off-label (fora das recomendações que constam na bula) por algumas pessoas como uma forma de eliminar os quilos extras. Mais recentemente, surgiram as versões do medicamento específicas para o tratamento da obesidade — aprovadas pelas entidades responsáveis pela fiscalização e regulação do uso dos medicamentos nos diferentes países.
Mas, afinal, para que fim está a semaglutida realmente indicada? E quem mais beneficia dessa e de outras terapias farmacológicas contra o excesso de peso? Segundo alguns médicos, este remédio simboliza o início de uma “era de ouro” no tratamento da obesidade — mas o uso indiscriminado dele para fins estéticos, sem orientação médica, preocupa.
A farmacêutica Novo Nordisk, responsável pela liraglutida e semaglutida, disponibilizou uma nota de esclarecimento sobre várias questões relacionadas com o uso desses medicamentos. zaraNo texto, o laboratório diz não apoiar “a promoção de informações de caráter off-label de seus medicamentos, ou seja, em desacordo com a bula”.
“O Ozempic, aprovado e comercializado para o tratamento do diabetes tipo 2, não possui indicação aprovada pelas agências regulatórias e internacionais para o tratamento de obesidade”, afirma. “Com o intuito de evitar risco para a saúde com a utilização de medicamentos ineficazes ou inapropriados, a Novo Nordisk recomenda que os pacientes adquiram os produtos em locais oficiais”, esclarece a nota.
Sobre os episódios de falta do medicamento, a Novo Nordisk diz que não é possível rastrear a finalidade de uso da droga (como já aconteceu em Portugal) comprada nas farmácias, mas entende e lamenta “a preocupação e possíveis transtornos que essa indisponibilidade temporária poderá causar em pacientes com diabetes 2, familiares e cuidadores”.
“Encaramos a situação de maneira extremamente séria e estamos a trabalhar incansavelmente para superarmos os desafios temporários“, conclui o texto.
Um remédio, três fins
A confusão relacionada a essa medicação começa pelo nome. Como dito anteriormente, a alcunha científica dela é semaglutida, a qual é usada como padrão ao longo deste artigo.
Mas os nomes com que ela é vendida nas farmácias variam segundo o objetivo terapêutico e a dosagem. O tratamento já aprovado há algum tempo contra o diabetes tipo 2 é o Ozempic, injetável e com 1 miligrama (mg). Uma segunda opção contra o diabetes é o Rybelsus, que vem na forma de comprimidos de 3,7 ou 14 mg. Por fim, o medicamento específico contra a obesidade é chamado de Wegovy. Este é injetável e traz 2,4 mg.
Ou seja: falamos de três produtos distintos, cuja semelhança é o facto de terem a semaglutida como princípio ativo.
Mas como é que essa molécula é capaz de reduzir o peso de uma pessoa? A médica Simone Van de Sande Lee, diretora do Departamento de Obesidade da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), aponta três efeitos no organismo.
Isso porque a semaglutida “imita” a ação de uma hormona produzida no intestino: o GLP-1. “O principal mecanismo de ação desse remédio, que pertence à classe dos análogos de GLP-1, acontece no sistema nervoso central. Ele viaja pela corrente sanguínea e chega às regiões do cérebro que controlam a sensação de fome e o gasto de energia”, explica.
“E isso gera um sensação de saciedade ao resto do organismo, o que faz o indivíduo ter uma ingestão menor durante as refeições”, complementa a endocrinologista, que também é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O resultado prático disso é precisamente o emagrecimento.
Outro efeito da semaglutida é o de estimular a liberação de insulina pelo pâncreas. Esta hormona é responsável por retirar da circulação sanguínea o açúcar obtido dos alimentos e colocá-lo dentro das células, onde será usado como fonte de energia. Por fim, o fármaco também retarda o esvaziamento do estômago — como a comida fica nesse órgão durante mais tempo, a sensação de barriga cheia acaba por se prolongar.
Como explicado, a semaglutida para tratamento da obesidade é injetável (vem numa espécie de caneta, com uma agulha fina na ponta), e deve ser aplicada uma vez por semana. Nos estudos que serviram de base à aprovação do medicamento, a perda de peso média entre os voluntários foi de 17% — porcentagem que supera o obtido com outras opções farmacológicas disponíveis.
Pelo que foi descrito até agora, os efeitos adversos do tratamento são classificados como transitórios, leves ou moderados, afetando principalmente o sistema digestivo: os pacientes podem experimentar sensações de náuseas e enjoos, além de sintomatologias como diarreia ou constipação.
Nas pesquisas, também foram observados poucos casos de pedras na vesícula e pancreatite — embora os números não tenham sido suficientemente grandes para alcançar uma relevância estatística.
Quando é recomendado?
Para saber quem mais beneficiaria do tratamento com a semaglutida, é preciso antes conhecer uma das medidas mais utilizadas para diagnosticar quadros de sobrepeso ou obesidade: o Índice de Massa Corporal, ou IMC.
Para chegar a esse número, basta dividir o peso de um indivíduo pela altura elevada ao quadrado. O número obtido a partir dessa operação matemática deve encaixar-se numa das categorias a seguir:
Menor que 18,5 – abaixo do peso normal
Entre 18,5 e 24,9 – peso normal
Entre 25 e 29,9 – sobrepeso
Entre 30 e 34,9 – obesidade grau 1
Entre 35 e 39,9 – obesidade grau 2
Acima de 40 – obesidade grau 3
É importante dizer que o IMC é apenas uma medida de referência e nem sempre ele reflete de modo absoluto a saúde de uma pessoa ou as condições particulares de cada um — um atleta de alto rendimento muito forte, por exemplo, pode ter números que ficam acima do “peso normal”, mas mesmo assim ele não tem sobrepeso ou obesidade.
Na bula, a semaglutida está indicada para todos os indivíduos com obesidade (ou seja, com o IMC acima de 30). Também pode ser considerada uma opção para pacientes com sobrepeso cujo IMC supera os 27 e há alguma comorbidade identificada (ou doença associada), como hipertensão, colesterol alto, diabetes, apneia do sono, entre outras.
Em ambos os casos, a sua aplicação dela deve estar sempre associada as mudanças no estilo de vida, que incluem dieta e atividade física regular.
Arsenal ampliado
“Historicamente, o tratamento da obesidade está cheio de deceções“, lembra Halpern. No passado, foram aprovadas medicações que até funcionavam, mas estavam associadas a efeitos graves e potencialmente fatais.
Antes da chegada da semaglutida, os remédios disponíveis para regular o peso corporal eram poucos: a sibutramina, o orlistate, a liraglutida e alguns antidepressivos. “Falamos de opções que são razoavelmente eficazes, com uma perda de peso que varia entre 5 e 10%“, estima o endocrinologista.
“Porém, na maioria das vezes, os pacientes precisam de perder mais peso do que isso”, complementa. “O avanço no conhecimento científico e o desenvolvimento de novos tratamentos permitem viver esta era de ouro no tratamento da obesidade”, classifica o cirurgião Ricardo Cohen, do Centro Especializado em Obesidade e Diabetes do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo.
Segundo Cohen, a disponibilidade de tantas opções permite escolher melhor o tratamento para cada paciente, segundo as necessidades dele. “Na próxima década, vamos conseguir individualizar cada vez mais os cuidados. Com o avanço da genética, inclusive, saberemos de antemão se uma pessoa com obesidade vai beneficiar mais de um medicamento ou da cirurgia bariátrica”, antevê o médico.
Neste contexto, os medicamentos mais antigos continuarão a ter valor. Isto porque nem todo mundo responde bem à semaglutida. De acordo com os especialistas, os antidepressivos também seguirão valiosos para os casos em que o ato de comer envolve compulsões e questões emocionais.
Cohen ainda aponta que a cirurgia bariátrica seguirá como uma alternativa importante, especialmente para os casos mais graves (quando o IMC supera os 35 ou os 40) ou para os indivíduos que não respondem às medicações.
Os novos pilares terapêuticos
O endocrinologista Walmir Coutinho, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), observa que tantos avanços científicos modificaram até a ordem de prioridade dos tratamentos contra a obesidade.
Tradicionalmente, as sociedades médicas costumavam prescrever mudanças na dieta e prática de exercícios físicos como a primeira linha terapêutica para lidar com o excesso de peso. Só quando essas estratégias falhavam é que os medicamentos ou procedimentos cirúrgicos entravam em cena. Mas isso começou a ser questionado mais veemente em meados de 2020, com a publicação das Diretrizes de Tratamento de Obesidade do Canadá.
Coutinho destaca que, pela primeira vez, um documento desse porte reconheceu que intervenções psicológicas, medicações e cirurgia bariátrica formam os três pilares terapêuticos básicos — e modificações na alimentação e estímulo à atividade física atuam como forças complementares para a perda de peso.
“A ciência já comprovou que dieta e exercício físico até funcionam bem no curto e no médio prazo, mas perdem a eficácia com o passar do tempo“, cita Coutinho, que também é ex-presidente da Federação Mundial de Obesidade. No entanto, apesar de todos os benefícios observados nos últimos anos, as terapias medicamentosas contra o excesso de peso esbarram em pelo menos três grandes obstáculos.
Preconceitos que insiste em não ir embora
“Infelizmente, a obesidade continua rodeada de estigmas“, lamenta Cohen. “Para muitos, esse problema ainda é visto como uma falha de caráter ou falta de vontade, como se a pessoa só não emagrecesse porque não se esforça ou não quer“, observa o cirurgião.
“Não se pode atirar a culpa da obesidade nos pacientes. Falamos de uma doença crônica progressiva que necessita de intervenção, como qualquer outra”, afirma ele.
Ou seja: pelo que se sabe hoje em dia, a obesidade não é apenas uma questão de comer demais ou gastar poucas calorias. Trata-se de uma disfunção metabólica muito complexa, sobre a qual há uma influência de fatores genéticos e de estilo de vida. Esta noção distorcida sobre o que é obesidade e o que pode ser feito para combatê-la constitui, portanto, a primeira barreira na procura por uma solução para o problema.
O endocrinologista destaca que, segundo organizações internacionais e levantamentos recentes, todos os anos são registradas 4 milhões de mortes associadas ao excesso de peso e à obesidade. E a tendência é que esses números só cresçam no futuro.
Usos estéticos inadequados
A segunda barreira citada pelos especialistas é justamente a banalização dos medicamentos mais novos, principalmente da semaglutida. Como citado no início da reportagem, ela virou uma moda nas redes sociais — e muita gente passou a utilizá-la por conta própria.
“A venda deste medicamento está dependente de prescrição médica”, conta Lee. “Mas, como a retenção da receita pela farmácia não é obrigatória, na prática muita gente consegue comprá-lo mesmo sem ter o pedido de um profissional de saúde“, aponta a endocrinologista.
Coutinho lembra que a semaglutida “não é cosmético” e é necessário desenvolver maneiras de inibir esse uso supérfluo. “Tomar a medicação com fins estéticos é preocupante, porque isso gera um desbalanço na relação risco-benefício“, ressalta.
Ou seja, a pessoa que toma a injeção sem necessidade terá uma perda mínima, de poucos quilos, e ainda sofrerá com os efeitos colaterais — ainda mais se o uso é feito por conta própria, sem a orientação do médico, que procura aumentar a dosagem aos poucos para observar as reações e lidar com possíveis incômodos.
“A semaglutida não é uma droga para perder três quilos e usar uma roupa especial no casamento de um amigo no fim de semana”, alerta Cohen. Halpern aponta que a forma como o medicamento é retratado nos meios de comunicação e nas redes sociais contribui para essa noção errática.
“Precisamos entender de uma vez por todas que não estamos falando de medicamentos para emagrecer. Eles são tratamentos contra uma doença“, diferencia. O endocrinologista acrescenta que esse uso estético também afeta os pacientes que realmente beneficiam do fármaco — nos EUA, por exemplo, foram registrados episódios de falta de doses em farmácias pela alta procura dos últimos meses.
ZAP // BBC