Milhares de animais usados para experiências. Política dos 3 R’s deve ser prioridade

Num momento em que se fala de uma “nova era da Ciência”, estudantes e profissionais da área mostram cada vez mais preocupação com a experimentação animal. Numa conversa promovida na Faculdade de Ciências da Universidade do Porto esta segunda-feira (13), especialistas debatem a substituição da prática, a redução do uso de animais e minimização do seu sofrimento

Todos os anos, milhares de animais são usados para experiências. Paralelamente, tem-se notado uma crescente preocupação com o bem-estar animal por parte da comunidade académica e científica. Para falar sobre o tema, a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (FCUP) acolheu, na passada segunda-feira (13), um debate organizado pelo Núcleo de Estudantes de Bioquímica da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto (NEBQUP).

Para analisar perspectivas diferentes, o painel reuniu Inês Sousa Real, presidente do Partido das Pessoas, dos Animais e da Natureza (PAN), Anna Olsson, investigadora e pioneira da implementação do bem-estar animal em Portugal, Isabel Lopes, membro do Comité Responsável pela Experimentação e Bem-Estar Animal do Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro, Nuno Franco, Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Ciências em Animais de Laboratório e Ana Paula Martins, técnica superior da Divisão de Bem-Estar Animal da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV). A moderar esteve Paula Ferreira, membro da Comissão de Acompanhamento dos biotérios do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS).

Questões como a possibilidade da substituição deste tipo de experimentação por métodos não-animais, a redução do uso de animais e minimização do sofrimento durante os procedimentos foram os tópicos mais relevantes em cima da mesa.

Apesar das diferentes visões, há um conceito, referido por todos os oradores, com uma opinião favorável unânime – a aplicação da Política dos 3 R’s. Esta legislação incorpora os compromissos de substituição (Replacement) de animais por métodos alternativos, redução (Reduction) do número de animais e refinamento (Refinement), ou melhoria, dos procedimentos utilizados, com vista a minimizar sofrimento, dor ou danos permanentes.

Quanto à substituição, Anna Olsson, explica que há uma tendência para pensar no conceito de experimentação animal de uma forma demasiado redutora – isto é, limitando-a ao que se faz em laboratório em prol da saúde humana. Contrariando esse mito, a investigadora lembra que também há experiências em que os seres são objetos de estudo para o bem da sua espécie.

Nesse sentido, Olsson acrescenta que, ao abolir totalmente este método, substituindo-o por alternativas com células humanas ou voluntários humanos, podemos estar a descurar alguns domínios importantes nos quais se estudam os animais.

Isabel Lopes, que atualmente se dedica à avaliação de risco de compostos químicos em anfíbios reconhece que, por agora, não é possível realizar a investigação sem recorrer aos animais. A investigadora tenta, sempre que possível, devolver os anfíbios ao seu habitat após a experimentação – mas lamenta a falta de conhecimentos sobre estas espécies por parte de veterinários, que poderiam ajudar a devolver ainda mais exemplares ao seu meio.

A docente ressalva, porém, que com o desenvolvimento de metodologias alternativas é previsível que, no futuro, se consiga reduzir significativamente o uso da prática, até neste tipo de avaliações.

Já Inês Sousa Real considera que há tendência a partir de uma “visão antropocêntrica” e que se deve “descentrar a ética”, pois “não nos podemos esquecer de que não estamos sozinhos”.

Para diminuir a experimentação animal e, por conseguinte, o sofrimento injustificado, a líder do PAN lembra alternativas como o incentivo à filmagem dos procedimentos com o objetivo de facilitar a disseminação do conhecimento e de reduzir o número de experimentações. Mais ainda, diz que deve ser feita a aposta em políticas públicas que permitam investir na inovação e a exploração de modelos alternativos in vitro e in silico.

Já Nuno Franco foi taxativo quanto à necessidade de se proceder à experimentação animal, relembrando os avanços na medicina ao longo da história decorrentes dessa prática. Na sua intervenção, mencionou o contributo que a prática deu aos procedimentos cirúrgicos em humanos, aos fármacos anti-alérgicos, aos antibióticos e às vacinas.

Nesse âmbito, o investigador referiu, como exemplo, a utilização de animais para o fabrico das vacinas contra a Covid-19 que, segundo o mesmo, salvaram a vida a cerca de 20 milhões de pessoas. Apesar de relativizar o stress que determinados procedimentos poderão causar aos animais, Nuno Franco atesta que ele e os investigadores que usam a mesma metodologia têm em conta a regulamentação e que lhes tentam causar o menor sofrimento possível.

O papel dos animais na ciência: “A situação atual tem potencial para ser melhorada”

Em 2022, Comissão Europeia lançou um relatório sobre as estatísticas do uso de animais para fins científicos nos estados membros da União Europeia e na Noruega durante 2019. Só em Portugal, nesse período, foram usados 79 447 animais em experiências. Ratos, ratazanas, peixes, porquinhos-da-Índia, coelhos, cães, gatos, porcos e anfíbios são algumas das espécies mais usadas.

Em conversa com o JPN, Anna Olsson afirmou que a experimentação animal “não deve ser uma condição sine qua non [isto é, uma condição obrigatória] para se entrar numa carreira científica na área da investigação biológica”.

A investigadora assegura que “a nova era da Ciência é um debate real na comunidade científica“, tendo em conta que “é possível conseguir conhecimento utilizando muitos métodos diferentes”. E aponta: “A situação atual tem potencial para ser melhorada”.

Sobre este assunto, em declarações ao JPN, a porta-voz do PAN sublinha que, apesar da investigação com recurso aos animais ter dado  “os seus contributos para a ciência”, “não nos podemos esquecer a que preço é que isso aconteceu”. Por haver um conhecimento mais aprofundado da saúde e meios que permitem apostar em modelos distintos, surge a “elevada responsabilidade” de deixar a prática “para trás”.

A proteção dos animais começa nas escolas e estende-se até às legislações

Quando questionada pelo JPN sobre a fiabilidade da regulamentação e da fiscalização que vigoram no país, a presidente do PAN referiu que, além de uma escassez de meios, temos “uma legislação muito dispersa e de difícil aplicação”.

Mais ainda, Inês Sousa Real salienta a falta de transparência na área da investigação com recurso à experimentação animal. “Um relatório recente da associação europeia que faz a avaliação da experimentação animal e do bem-estar animal diz-nos que só 26% das faculdades e dos investigadores dentro da União Europeia divulgam dados de forma transparente”, refere.

A presidente do PAN também sugeriu o investimento noutros métodos ao nível da educação. “Ao olharmos para as faculdades de medicina veterinária, vemos que se continuam a utilizar animais de companhia para explicar aos alunos os procedimentos”, aponta. Completa que estas instituições “deviam estar, neste momento, a servir de hospitais públicos”, permitindo uma “aprendizagem supervisionada pelos professores”, que preserve a vertente educativa, sem “procedimentos desnecessários”.

// JPN

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