Uma lacuna na lei que pretendia proteger as vítimas de violação está a levar a que as penas dos agressores sexuais sejam reduzidas. O PSOE quer rever a legislação, mas o Unidas Podemos atira a culpa para os juízes machistas.
Por estes dias, o Governo espanhol anda às avessas por causa da lei contra violência sexual conhecida como “só sim é sim” — que estipula que as vítimas já não têm de provar que sofreram violência ou intimidação e que define que apenas a ausência de consentimento é suficiente para que um ataque seja considerado violação — que entrou em vigor em Outubro.
Uma brecha na redacção da legislação acabou por levar a que esta lei, que Pedro Sánchez descreveu como uma “grande conquista do movimento feminista” que serviria de exemplo ao resto do mundo, saísse pela culatra.
Dado usar uma única definição mais alargada de agressão sexual, a nova lei acabou por levar a que mais de 400 condenados tivessem as suas penas reduzidas e até mesmo a que 45 fossem libertados. Isto acontece porque, apesar de elevar as penas de alguns crimes, como a violação em grupo ou sob efeito de substâncias, a nova lei reduz a sentença mínima quando não há agravantes.
Em Espanha, as sentenças podem ser revistas quando há mudanças nas leis que beneficiem os condenados. Por esta razão, centenas de penas por crimes sexuais estão agora a ser reduzidas.
Ainda antes de a lei entrar em vigor, houve especialistas a alertar para este risco. Altamira Gonzalo, vice-presidente da Associação Feminista Socialista FeMeS, atira farpas à Ministra da Igualdade, Irene Montero, que garantiu que não haveria “um único pedido de redução de penas”.
“Só a ignorância permite afirmar algo assim. Fizemos o aviso no momento certo. Tanto o Governo como o legislador estavam informados e poderiam ter corrigido essa falha”, revela ao Expresso.
“Fachos com toga”
A oposição aproveitou a oportunidade para atacar o Governo. Elías Bendono, secretário do Partido Popular (PP), acusa o Governo socialista de “pôr violadores em liberdade” e o VOX vai ainda mais longe, pela voz do líder parlamentar Iván Espinosa de los Monteros.
“Pederastas, violadores, sequestradores, terroristas, sediciosos, corruptos, sindicalistas subvencionados e multimilionários estrangeiros globalistas… eis os grandes beneficiários dos quatro anos de Governo de Pedro Sánchez. Os prejudicados são os espanholes honrados e decentes”, atira.
Depois de vários meses de pressão por parte da oposição, Sánchez anunciou que o Governo planeia rever a lei e fechar esta lacuna.
Mas esta promessa não está a cair bem do lado dos parceiros de esquerda Unidas Podemos (UP). Irene Montero, do UP, tem culpado os “‘fachos’ com toga” e “juízes machistas” nos tribunais espanhóis, descrevendo a lei como “irrepreensível”.
“Quando uma nova lei entra em vigor e traz uma grande mudança, vai demorar algum tempo a funcionar e é claro que há juízes que continuam com uma abordagem sexista e patriarcal e não aplicam a lei da forma certa. O problema não é a lei, mas a interpretação voluntarista judicial contra os avanços do feminismo. A justiça machista cria impunidade”, reforça ainda Ione Belarra, Ministra dos Direitos Sociais.
Os comentários das Ministras do UP foram amplamente criticados por representantes dos magistrados e pela oposição. No seu editorial de 17 de Janeiro, o El País também não poupou na condenação às declarações de Montero.
“A pior saída possível é a adoptada pela Ministra da Igualdade e os demais responsáveis do seu departamento: acusar os juízes de agirem como pouco menos do que esquadrões machistas”, refere o jornal, que insta o Governo a “assumir o erro e procurar forma de remediá-lo, para impedir que se prejudique a confiança da cidadania na capacidade da justiça para proteger as vítimas da violência sexual”.
Governo não se entende
Por sua vez, o PSOE atira as culpas do impasse ao UP. Emiliano García-Page, uma figura sénior no partido de Sánchez, questiona a hesitação de Irene Montero em mudar a lei. “Quantas reduções de sentença terão de haver antes de alguém no Ministério da Igualdade, que promoveu a lei, começar a pensar que cometeu um erro?”, frisa, citado pelo Politico.
Apesar da sua hesitação em público, o UP tem discutido uma revisão à lei com o PSOE para acabar com a tendência de redução das penas. No entanto, continuam a existir preocupações sobre se possíveis mudanças podem minar o objectivo inicial de inscrever a noção de consentimento na lei.
Prova disso foi a troca de galhardetes entre Moreno e a Ministra da Justiça, Pilar Llop, que pertence ao PSOE. A reforma de Llop volta a definir a moldura penal dos delitos sexuais da mesma forma que a lei anterior, mantendo o conceito de consentimento.
Para Moreno, no entanto, esta proposta vai contra o espírito da lei anterior e obrigará as vítimas a sofrer um novo “calvário probatório” devido ao regresso dos critérios de violência e intimação para distinguir os crimes.
Perante o impasse, Pedro Sánchez decidiu levar a proposta de revisão da lei a votos sem o apoio da UP, o que lhe valeu o selo de aprovação da direita. Esta aparente aproximação ao PP e ao VOX pode acabar por sair cara ao PSOE na antecipação das legislativas marcadas para o final de 2023 — numa altura em que as sondagens já não são favoráveis aos socialistas.
Este está longe de ser o primeiro choque entre os parceiros de Governo, que já não se entenderam sobre o fornecimento de armas para a Ucrânia, a legislação transgénero e a monarquia.
“Isto faz parte de uma rivalidade contínua – às vezes explícita, outras vezes menos – entre o PSOE e a UP pelo controlo da questão feminista. Está claro que isto é muito mau para o Governo. A redução de penas para criminosos sexuais devido a esta lei está a ter um impacto nas perspectivas eleitorais da esquerda em geral”, considera Pablo Simón, cientista político da Universidade Carlos III de Madrid.