Sabemos que havia animais durante o período mais frio que a Terra alguma vez teve. Mas duas questões se levantam: como eram esses animais, e como conseguiram sobreviver?
Noutra era, o planeta Terra já foi algo como um cruzamento de uma arca congeladora e um triturador de carros.
Durante vastos períodos da história do planeta, toda a Terra estava esmagada sob uma camada de gelo com mais de um quilómetro de espessura. Os cientistas chamam-lhe a Terra Bola de Neve.
Alguns animais primitivos, entre os quais os resistentes extremófilos de que os tardígrados são exemplo, conseguiram sobreviver a essa era gelada, há cerca de 720 a 580 milhões de anos.
Mas não foi propriamente fácil.
As sucessivas expansões e contrações dos gigantescos mantos de gelo que na altura cobriam a Terra deixaram poucos ou nenhuns vestígios dos animais que nela habitavam — e eliminaram quaisquer pistas acerca do seu aspeto e de como sobreviveram.
Mas, apesar da falta de evidências, “é razoável considerar que um gama diversificada de vida animal tenha habitado esta Terra Bola de Neve”, diz o biólogo britânico Huw Griffiths, investigador da British Antarctic Survey, à revista de ciências marinhas Hakai.
Griffiths sugere que este florescimento de vida na Bola de Neve terá acontecido antes da chamada explosão cambriana, período há cerca de 540 milhões de anos em que a Terra viu surgir vida animal em quantidade e diversidade sem precedentes.
“Não é um grande salto de imaginação pensar que pudessem ter existido coisas muito menores e mais simples antes da explosão cambriana”, diz Griffiths.
Embora o quadro completo da vida animal nesse período esteja perdido, Griffiths e seus colegas tentaram pintá-lo — e expuseram-no num artigo publicado recentemente na Global Change Biology.
A equipa analisou três períodos diferentes da evolução da Terra congelada.
O primeiro foi a Glaciação Sturtiana, que começou há cerca de 720 milhões de anos e durou 60 milhões de anos — um período incrivelmente longo, quase tão longo como o período entre o fim da era dos dinossauros e os nossos dias.
O segundo período estudado, a Glaciação Marinoana, começou há 650 milhões de anos e durou apenas 15 milhões.
Finalmente, os cientistas estudaram a Glaciação Gaskiers, que ocorreu há cerca de 580 milhões de anos atrás — uma das últimas glaciações do Pré-Cambriano.
Esta glaciação foi ainda mais curta, e é habitualmente chamada de Bola de Lama em vez de Bola de Neve, porque a cobertura de gelo não era tão extensa.
Embora o gelo tenha esmagado a maioria dos fósseis desses períodos, os cientistas encontraram alguns remanescente — fósseis raros que retratam os animais estranhos que existiam na época da Glaciação Gaskiers.
Entre estes antigos habitantes da Terra de bola de neve encontravam-se os Petalonamae, filo de animais arcaicos, também chamados frondomorfos, com aspeto de folhas de plantas pteridófitas.
Os frondomorfos viviam no fundo do mar, sob o gelo, e possivelmente absorviam nutrientes da água que fluía à sua volta.
Com poucas evidências diretas, Griffiths e seus colegas argumentam que as estratégias de sobrevivência dos animais durante os grandes congelamentos do passado provavelmente têm semelhanças com o ambiente mais parecido que temos na Terra atualmente – a Antártida.
Algumas espécies atuais da Antártica, como as anémonas, vivem de cabeça para baixo afixados na parte inferior do gelo marinho.
Por seu turno, o krill — nome coletivo dado a um conjunto de espécies de pequenos crustáceos (a dieta preferida das baleias) — alimenta-se de micro-organismos disponíveis nesta papa lamacenta semi-gelada.
Assim, sugerem Griffiths e os colegas, os habitantes da antiga Terra Bola de Neve terão conseguido sobreviver adotando estratégias semelhantes: procurando abrigo em locais parecidos e alimentando-se da mesma forma.
Também é possível, dizem os cientistas, que os ciclos de aumento e diminuição do gelo marinho tenham trazido para terra algas ou outros micro-organismos que viviam no gelo na água do mar — o que pode ter fornecido alimento para outros animais primitivos.
Um dos desafios que os habitantes de uma Terra bola de neve enfrentaram foi a possível falta de oxigénio — não só porque os níveis de O2 atmosférico eram na altura baixos, também porque não havia dissolução de gases atmosféricos na água líquida como atualmente.
Mas algumas espécies que vivem atualmente no fundo do mar Antártico resolvem esse problema à custa de correntes de água que trazem um fluxo constante de oxigénio e nutrientes de pequenas áreas de mar aberto na superfície para as profundezas do gelo.
Há ainda exemplos de algumas espécies de Poriferas, as conhecidas esponjas marinhas, que vivem em simbiose com bactérias, o que as ajuda a aceder a nutrientes quando outros alimentos de tornam escassos.
Assim, não há razão para pensar que tal não pudesse também ter acontecido com as espécies animais da Terra Bola de Neve.
“Estamos a falar de formas de vida muito básicas… mas na altura, isso era tudo o que uma espécie precisava para ser o Rei dos Animais”, diz Griffiths.
Andrew Stewart, investigador do Museu Te Papa Tongarewa, na Nova Zelândia, que não esteve envolvido no estudo, considera que os extremófilos antárticos são uma prova de que a vida na Terra é muito resistente – e talvez sempre o tenha sido.
“A Bola de Neve era um lugar incrível, e tendemos a pensar que nada lá poderia sobreviver — que disparate!”, diz Stewart. “Bem, na realidade, podia“.