Qual a origem das bíblias deixadas em gavetas de hotel pelo mundo?

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Segundo a Bíblia, Gideão foi um exemplo de fé. Terá sido o quinto juiz de Israel, cerca de mil anos antes do nascimento de Cristo, e, sob a sua liderança, os israelitas foram libertados dos midianitas, um povo que dominava a região.

De acordo com a tradição, Gideão era um homem simples, de uma tribo pouco relevante. E mesmo assim foi o escolhido por Deus para comandar o povo – e esta razão ainda adiciona mais brilho à sua biografia. O seu nome significa “guerreiro poderoso”, como relatou a CNN Brasil.

No fim do século 19, três caixeiros-viajantes norte-americanos decidiram utilizar o nome da figura bíblica para batizar uma empreitada. Em 1899, Samuel Eugene Hill (1868-1936), John Nicholson (1859-1946) e William Knights (1853-1940) criaram a organização Gideões Internacionais.

Esta entidade cristã evangélica, sem fins lucrativos, foi criada por homens de negócios, cristãos, com o objetivo de difundir a palavra de Deus por meio da distribuição, sempre gratuita, de cópias da Bíblia.

São os responsáveis pela Bíblia de bolso, que geralmente contém apenas o Novo Testamento, os Salmos e os Provérbios, e que podem ser encontradas nas gavetas de quartos de hotel pelo mundo.

Trata-se de “uma organização de natureza religiosa e educativa. Geralmente, a associação é formada por homens de negócios, profissionais cristãos. E fazem questão de deixar claro, hoje em dia, que são homens e mulheres, no caso as suas respetivas esposas”, explicou o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes.

Essa ênfase na participação feminina tem motivos. Até 1941, a organização era restrita aos homens.

“Compreenderam então que seria mais elegante ao sexo feminino a oferta dos Novos Testamentos ao pessoal de enfermagem nas Forças Armadas, enfermeiras civis em hospitais e outras instituições”, disse Moraes, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, recordando que na altura decorria a Segunda Guerra Mundial.

Contudo, até hoje, as mulheres são consideradas oficialmente “auxiliares” – gideões são só os homens.

Moraes explica que os membros do grupo costumam ser angariados em campanhas em igrejas protestantes ou evangélicas, embora a organização em si não seja ligada a nenhuma congregação.

“A finalidade deles, como diz o próprio estatuto, é ganhar pessoas para o Senhor Jesus Cristo por meio da colocação e distribuição gratuita da Bíblia, ou parte dela, em hotéis, hospitais, clínicas, escolas, repartições públicas, prisões, Forças Armadas e noutros locais, em instituições definidas pela organização, bem como a entrega pessoal pelos membros da associação”, explicou o professor.

No século 19, havia nos Estados Unidos um clima de efervescência económica. Por um lado, isso motivava diversos homens de negócio a viajarem pelo país, como vendedores e representantes comerciais. Por outro, esse movimento também deu argumentos para um conservadorismo religioso – fortalecendo as preocupações daqueles que viam no avanço cultural um risco para a hegemonia de Deus.

 

“E a história inicial dos Gideões está associada a esse contexto e a dois sujeitos, dois caixeiros-viajantes que, num determinado momento das suas vidas, em 1898, nos Estados Unidos, chegaram a um determinado hotel e acabaram por dividir um quarto, porque não havia mais nenhum disponível”, contou Moraes.

Eram Samuel Hill e John Nicholson e esse hotel onde se encontraram era o Boscobel Hotel and Central House, na cidade de Boscobel, em Wisconsin. Na noite de 14 de setembro de 1898, e segundo um texto publicado no website dos Gideões Internacionais, quando Nicholson chegou, por volta das 21:00, foi informado pelo rececionista que a única opção possível, diante da casa lotada, era que dormisse numa cama extra que havia no quarto já reservado por Hill.

De acordo com o relato, naquela noite Hill dormiu enquanto Nicholson continuou a trabalhar no quarto. Mais tarde, resolveu ler um pouco da Bíblia antes de dormir. Foi quando Hill despertou.

“Senhor Hill, desculpe-me se mantenho a luz acesa ainda e o acordei, mas é que sempre costumo ler a Palavra de Deus e ter uma conversa com Ele antes de me deitar”, teria dito ao companheiro.

Em vez de demonstrar incómodo, Hill levantou-se e pediu para lerem em conjunto. Leram os 16 primeiros versículos do capítulo 15 do evangelho de João, uma passagem em que Jesus deixa o mandamento do amor e diz que escolheu os seus seguidores para que estes seguissem e dessem frutos.

Inspirados, iniciaram uma conversa sobre a necessidade de que fosse criada uma associação de empresários cristãos viajantes. “Eles fizeram um culto, oraram a Deus e estabeleceram ali uma estratégia, uma aliança, um pacto”, afirmou Moraes.

Os dois homens mantiveram o contacto e, quase um ano mais tarde, a 01 de julho de 1899, na cidade de Janesville, também em Wisconsin, juntamente com um terceiro amigo, William Knights, fundaram oficialmente a Gideões International.

“Eram representantes comerciais que perambulavam pelos Estados Unidos e imaginaram que aquilo era uma excelente oportunidade para difundir a palavra de Deus”, contextualizou Moraes, indicando: “essa associação tornou-se na célula inicial dos Gideões.”

“Nesse momento, diante da efervescência dos Estados Unidos, os cristãos mais arraigados se estavam a articular para reagir aos avanços culturais do mundo, aquilo que consideravam como excessos”, contextualizou o historiador, que lembra que as bases do fundamentalismo norte-americano também data desse mesmo período.

“[A estratégia dos Gideões foi] levar a palavra de Deus numa cruzada conservadora. O que inspira esses homens [os primeiros Gideões] é uma luta contra a cultura mundana que estava a ‘invadir’ a seara cristã”, comentou Moraes.

A organização cresceu e difundiu-se rapidamente. Em 1907 o grupo passou a deixar um exemplar da Bíblia em cada receção de hotel por onde passassem. “Quem quisesse poderia pegar para ler”, contou o professor.

“A partir de 1908 eles decidiram fornecer uma Bíblia para cada quarto de hotel. E perceberam que essa estratégia era elegante, funcionaria e começava a dar resultado”, continuou.

Na primeira distribuição, colocaram 25 Bíblias num hotel em Montana. E o trabalho seguiu assim até 1916, quando começaram a disponibilizar também exemplares em hospitais. Durante a Segunda Guerra Mundial expandiram para as Forças Armadas. Em 1946, passaram a visitar escolas e a distribuir Bíblias para estudantes.

Foi a partir de 1947 que os Gideões passaram a atuar noutros países além dos Estados Unidos e do Canadá. “Atualmente, dizem que já distribuíram mais de 2 mil milhões de escrituras em todo o mundo”, referiu.

A associação chegou ao Brasil em 1956, através de um professor universitário de Belo Horizonte chamado José Ramos Vilas Boas, que entrou para a organização naquele ano e realizou a primeira distribuição de Bíblias no país a 18 de outubro, na Assembleia Legislativa do Estado de Minas Gerais.

Desde 1958, a organização já distribuiu 194 milhões de exemplares da Bíblia em território brasileiro. “Quase a [totalidade] da população brasileira, o que é um dado impressionante”, comparou o teólogo.

Para viabilizar essas ações, contam com contribuições de associados e parcerias de empresas que acreditam na causa, explicou o especialista referindo que a estratégia inicial, de fornecer os exemplares em hotéis, acabou por funcionar muito bem.

“O texto está ali, o sujeito está num quarto de hotel ou numa cama de hospital, quer conforto e procura no Novo Testamento algo que lhe traga paz, que lhe traga consolo. Funciona muito bem, por isso o sucesso da organização”, analisou.

Por praticidade e economia, acabaram por optar por distribuir uma versão reduzida da Bíblia, na maior parte das vezes. A edição mais comum associada ao grupo é um modelo de bolso que contém apenas os textos do Novo Testamento, acrescidos de dois livros do Antigo Testamento: Provérbios e Salmos.

A BBC News Brasil contactou a sede norte-americana do grupo e a organização brasileira para obter informações. Embora tenham sido vários os contactos, não houve nenhum retorno por parte dos norte-americanos. A sede brasileira limitou-se a enviar uma nota, assinada pelo diretor executivo nacional, Moisés Danziger.

No texto, agradeceu o interesse pelo assunto mas salientou que o grupo tem “uma regra, definida pela matriz norte-americana, de não conceder entrevistas ou divulgar” o “trabalho em veículos de comunicação […] abertos ao público geral”.

“A nossa forma de divulgação é apenas dentro do ambiente das igrejas que são parceiras do nosso trabalho”, acrescentou Danziger. Disse ainda que poderiam ser utilizadas as informações disponibilizadas no website da organização.

De acordo com o mais recente relatório anual publicado pela matriz norte-americana, no último ano fiscal os Gideões distribuíram 11,6 milhões de Bíblias na América Latina, 7,6 milhões nos Estados Unidos, 2,9 milhões na Europa, 9,6 milhões em África, 12,8 milhões na Ásia e 1,4 milhões na Oceania.

ZAP // BBC News

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1 Comment

  1. Embora estivesse a pensar adquirir e ler o Novo Testamento da Bíblia, após a leitura desta notícia também passo a ter curiosidade em ler o Antigo Testamento, o qual sei que é de difícil compreensão. Julgo, mas não tenho a absoluta certeza de que só com as duas partes da Bíblia é que ela se torna mais compreensiva. Esta fação parece-me que só pretendem divulgar “metade de Deus” e eu/nós queremos conhecer Deus, cada vez mais e e melhor. Esta fação parece-me que faz parte da sociedade materialista, em que alguns de nós somos atraídos por ela e, que no fundo despreza uma parte de Deus (Deus é uno!) que só se complementa com a outra parte, que eu próprio preciso de melhor entender. Deixem que Deus se apresente como Ele pretende, isto é, na sua plenitude. Deus é Uno e é esse que queremos conhecer e “lutar” para ir ao seu encontro. Foi essa a missão do Nosso maior Amigo, que se chama Jesus.

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