Na primeira viagem internacional do seu pontificado, o Papa Francisco fez um pedido um tanto inusitado ao presidente do Rio de Janeiro.
A chuva não dava tréguas há quatro dias e causava transtornos aos participantes da Jornada Mundial da Juventude, no Rio, em julho de 2013.
Francisco apegou-se a uma antiga tradição católica popular. Pediu a Paes que enviasse uma cesta de ovos a uma freira, para que esta colocasse aos pés de Santa Clara.
“Isso realmente foi feito, a informação foi confirmada pelas [religiosas] clarissas. Um assessor levou a cesta e fez a oferta à Santa Clara”, diz o jornalista Victor Hugo Barros, membro da Academia Brasileira de Hagiologia.
“E ao que tudo indica, resultou: já nos dias finais [do evento] o sol clareou. Parece que Santa Clara deu um jeito com São Pedro lá no céu…”, comenta Barros. “Mas podemos ver que até o Papa Francisco é adepto dessa tradição popular de ofertar ovos para a santa.”
Coincidência ou não, realmente no dia seguinte ao episódio, o céu ficou limpo no Rio. Mas o facto ilustra como a fama dessa jovem de uma pequena cidade da península itálica no século XIII continua grande, seja nos altares católicos, seja nas simpatias populares.
Autor do livro ‘Os Santos de Cada Dia’, o escritor e pesquisador J. Alves explica a origem da tradição de se oferecer ovos para a santa. “A versão mais difundida hoje é aquela em que as galinhas poedeiras do convento [onde vivia Clara] foram dizimadas por uma peste“, narra ele.
Acontece que os ovos eram especialmente úteis porque, com eles, as freiras preparavam doces para vender — com o dinheiro arrecadado, faziam as suas obras sociais. Clara então implorou ajuda a Deus. “Chegou ao mosteiro uma caravana de moradores de uma vila devastada por uma tempestade. Santa Clara acolheu-os e abrigou-os”, conta Alves.
“Em forma de gratidão, eles ofereceram as suas galinhas e os seus ovos. Feliz e agradecida, Santa Clara pediu a Deus que parasse a chuva naquela região, o que lhe foi concedido”, prossegue o escritor. “Assim nasceu a tradição de levar ovos caseiros para um convento de Clarissas, a fim de obter um bom tempo.”
Barros acrescenta que, segundo essa antiga história, Clara teria avisado os viajantes que o sol faria a tempestade na vila “desaparecer em 15 dias”. “E se voltasse a ocorrer, bastava atirarem ovos para o telhado e fazerem uma oração a Deus, pensando no convento [das clarissas]”, pontua ele. “Isso deu origem a esta lenda de que Santa Clara seria uma grande protetora contra chuvas.”
O hábito disseminou-se principalmente entre noivas preocupadas em ter um tempo bom no dia do casamento. “As que não querem chuva no grande dia levam ovos para um convento regido pelas irmãs clarissas. Mas a entrega tem de ser feita por uma pessoa do sexo feminino e os ovos deixados no altar de Santa Clara um dia antes da cerimónia. Isso garante que o sol brilha na festa”, conta Barros.
Ao longo da história, há registos de que ela era invocada por navegadores, principalmente os portugueses, para acalmar tempestades.
Na MPB, Jorge Ben Jor rendeu-se à tradição. Em 1981, lançou ‘Santa Clara Clareou’, justamente apoiado por essa ideia. “Santa Clara, clareou/ E aqui quando chegar vai clarear/ Os meus caminhos”:
Antes, o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) também havia citado essa característica de Clara no seu poema ‘Oração para Aviadores’. “Santa Clara, clareai/ Estes ares./ Dai-nos ventos regulares,/ de feição./ Estes mares, estes ares/ Clareai. // Santa Clara, dai-nos sol.”.
Oficialmente, Santa Clara é reconhecida pela Igreja como a padroeira da televisão — reconhecimento concedido pelo Papa Pio 12 (1876-1958) em 1958. E essa curiosa propriedade, mesmo ela tendo vivido sete séculos antes do advento de tal tecnologia, também encontra lastro numa narrativa popularizada na época.
“No final da sua vida, queria muito participar na missa de Natal na igreja, mas por causa da saúde [estava acamada], não poderia estar presente”, relata frei Francisco Lopes Neto, da Ordem dos Frades Menores. “Pediu para estar presente espiritualmente.”
E por isso a cerimónia teria aparecido em frente a ela, como uma projeção miraculosa, numa das paredes do seu quarto. “Foi uma espécie de televisão espiritual, séculos antes da invenção da televisão”, comenta Barros. “Quando as demais irmãs retornaram ao convento, a própria Santa Clara teria feito questão de narrar tudo o que havia ocorrido na missa, com os pormenores que só quem estivesse no templo seria capaz de fazê-los.”
Caetano Veloso, em 1991, inspirou-se na história para a sua música ‘Santa Clara, Padroeira da Televisão’. “Santa Clara, padroeira da televisão/ Que a televisão não seja o inferno interno, ermo/ Um ver no excesso o eterno quase nada (quase nada)/ Que a televisão não seja sempre vista/ Como a montra condenada, a fenestra sinistra/ Mas tomada pelo que ela é/ De poesia.”.
A seguidora de Francisco
Clara de Assis (1194-1253) foi uma mulher de família nobre que, encantada com o radicalismo de Francisco (1181 ou 1182-1226), decidiu seguir o seu exemplo: abandonar a vida de posses e entregar-se ao cuidado com os pobres.
Segundo relatos antigos, era uma moça muito bonita e estava a ser preparada, pela sua família, para arranjar um bom casamento — que lhe garantiria uma vida de riqueza e, aos seus parentes, o pagamento de um dote excelente.
Mas, ainda adolescente, ela teria ouvido algumas pregações de Francisco e dos seus companheiros pelas ruas de Assis. Às escondidas, passou a apoiar o grupo, doando alimentos e ajudando-os naquela missão.
A partir do ano 1211, ela passou a encontrar-se assiduamente com Francisco, vendo nele um pai espiritual, um mentor. Aos 18 anos, ela decidiu sair de casa. “Tinha 18 anos quando fugiu e foi ao encontro de Francisco”, narra J. Alves.
“Tornaram-se amigos. Naquele mesmo dia, Clara deixou que Francisco raspasse a sua cabeça e se consagrou totalmente a Deus, para uma vida de absoluta pobreza. Além de amigo fraterno, Francisco tornou-se no seu mestre e guia espiritual, no seu inspirador.”
O ato de raspar a cabeça significava o despojamento na mudança para a nova vida. “Clara escolheu Francisco como mestre de caminhada, um diretor espiritual”, salienta Barros. “Ele disse para ela se entregar a Deus completamente.”
A fuga da casa da família ocorreu, segundo os relatos antigos, pela “porta dos mortos”. Trata-se de uma saída dos fundos, comuns em casarões de nobres daquele tempo, que só era utilizada para a retirada de defuntos. “Isso indica que ela tomou uma posição radical, de deixar para trás a segurança que ela tinha na vida abastada”, interpreta Barros.
Os seus familiares não aceitaram tranquilamente a decisão. No dia seguinte tentaram resgatá-la junto aos religiosos, mas ela, abrigada dentro de uma igreja, ter-se-ia agarrado às toalhas do altar para que não fosse dali retirada.
Uma ordem feminina, com regras femininas
Acabou por viver em diversos conventos femininos até criar a sua própria instituição. “Seguindo os passos de Francisco, ela abandonou a vida confortável e abraçou a pobreza evangélica absoluta, fundando a chamada inicialmente Ordem das Damas Pobres”, pontua J. Alves. “Como Francisco de Assis, Clara arrastou atrás de si, não apenas familiares, como irmã, mãe e prima, mas também muitas jovens das famílias mais importantes de Assis, desejosas de um novo sentido para as suas vidas.”
“Ela e as suas companheiras passaram a viver do trabalho das suas mãos e das esmolas que recebiam e distribuíam aos pobres e indigentes”, afirma Alves.
Frei Lopes Neto ressalta a personalidade forte de Clara. “Num período em que a mulher era tão colocada de lado, desprezada, ela precisa de ser reconhecida”, ressalta o religioso.
Ela viria a ser a fundadora do ramo feminino da ordem franciscana, a Ordem de Santa Clara ou Ordem das Clarissas. Que se expandiu rapidamente. “Em 1228, já eram 24 os mosteiros que seguiam o carisma de Santa Clara, segundo levantamento da época”, cita Barros. No ano da morte de Clara, em 1253, o número havia saltado para 111.
“Depois da morte de Francisco [em 1226], Clara continuou a obra fransciscana“, afirma Barros. Lopes Neto compara a importância de Clara para o franciscanismo ao papel que teve São Paulo para a difusão do cristianismo. “Foi ela quem deu carne, sustento, lutou, batalhou e deu testemunho de vida para que a Igreja, a hierarquia e o movimento eclesial, não se esquecessem do legado de Francisco“, diz.
“A sua insistência e a sua força às vezes destoam da imagem feminina que às vezes o cinema nos faz ver [ao retratá-la]. Ela era uma mulher muito forte, de fibra, que sabia dizer não, sabia dizer sim. E, por isso mesmo, foi uma grande mãe, a grande sustentadora do carisma franciscano”, completa Lopes Neto.
Em um gesto que parecia muito à frente do seu tempo, ela tomou para si a tarefa de escrever a “forma de vida” da ordem que havia fundado. Ou seja: o conjunto de regras que deveria nortear o dia a dia de todas aquelas que escolhessem aderir a um convento das clarissas.
“Ela entrou para a história por ter sido a primeira mulher na história da Igreja a escrever uma regra de vida, esse conjunto de diretrizes e ensinamentos para a comunidade religiosa”, frisa Barros. “Foi um gesto bastante ousado, porque o primeiro esboço havia sido escrito pelo Papa Gregório 9º [(1145-1241)]. Ela assumiu o trabalho e lutou até ao fim da vida para que a regra fosse aprovada pela Igreja.”
Isso terá ocorrido apenas no dia 9 de agosto de 1253. Dois dias antes da sua morte.
“O seu funeral teve a presença do Papa [Inocêncio 4º (1195-1254)] e de cardeais, algo pouco usual naquela época”, comenta Barros.
// BBC