Começou em junho uma operação para identificar e registar os deslocados de mais de 60 países mantidos no campo al-Hol, no nordeste da Síria, onde mulheres e crianças que fugiram do califado vivem há mais de um ano e meio.
Segundo uma reportagem do Washington Post, divulgada no domingo, esta operação, que iniciou a 10 de junho sem aviso prévio, tem como finalidade registar os cerca de 14 mil estrangeiros detidos em campos como o al-Hol devido as suspeitas de envolvimento com o Estado Islâmico.
Nessa data, a Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria, apoiada pelos Estados Unidos (EUA), informou que havia começado a registar os deslocados, naquele que intitulam como “o campo mais perigoso do mundo”.
Não é certo o que acontecerá às dezenas de milhares de deslocados que permanecem nos campos, abandonados pelos seus governos. No al-Hol, aproximadamente de 30 mil iraquianos vivem numa seção separada do campo. Dentro desse anexo, algumas mulheres ainda estendem a bandeira do Estado Islâmico e impõem as suas medidas disciplinares, revelou o Washington Post.
O futuro destas pessoas foi inicialmente visto como um teste, no qual seria analisado o papel dos seus países de origem para equilibrar as responsabilidades de direitos humanos com preocupações de segurança. Com o passar dos meses, porém, estes casos escaparam da agenda política global.
Para os analistas, a operação de junho parece ser uma tentativa de otimizar a administração do campo, criando uma contabilidade abrangente sobre os moradores. Também pode ser usada para aumentar a pressão sobre os países de origem.
A autoridade liderada pelos curdos no norte da Síria disse que não pode gerir a tarefa sozinha e apelou repetidamente à ação de governos estrangeiros, apontando para uma vaga crescente de ataques das células adormecidas do Estado Islâmico em toda a região, avançou o Washington Post.
Embora alguns países tenham iniciado o processo de repatriamento, como é o caso dos EUA, grande parte da Europa Ocidental ainda não o fez, com as autoridades a apontar como obstáculos as preocupações com a segurança ou as políticas domésticas.
Dentro de al-Hol, as tendas das mulheres são montadas na terra, que se transforma em lama quando chove. As latrinas transbordam, o esgoto vaza para as tendas e cães rondam constantemente o perímetro em busca de comida.
De acordo com os deslocados, dezenas desapareceram do campo. Algumas partiram com contrabandistas, que chegam a cobrar até dezenas de milhares de dólares para levá-las. Outras acabaram em centros de detenção improvisados.
A pesquisadora Vera Mironova, da Universidade de Harvard, mantém contato com dezenas de mulheres dentro do campo. “Muitas pessoas escapam e, quando escapam, não temos nenhum vestígio delas”, contou. “Enquanto os governos não recolherem os seus cidadãos, ou realmente os rastreiam ou essas mulheres podem desaparecer”, acrescentou.
Na manhã de 10 de junho, os grupos de ajuda humanitária que operam no anexo foram informados de que não poderiam entrar por um período de duas semanas, enquanto decorriam os registos. Os grupos disseram que também foram informados de que as famílias receberiam apenas pão e água durante esse período.
De acordo com as fontes ouvidas pelo Washington Post, os australianos e os canadianos foram registados com recurso a sistemas biométricos fornecidos pela coligação liderada pelos EUA. O mesmo aconteceu com alguns que falavam russo. A coligação indicou que foram feitos 2.900 testes biométricos e recolhidas 8.000 amostras de ADN.
“Algumas dessas mulheres ainda são membros ativos do ISIS [Estado Islâmico], que precisam ser identificadas e removidas do cenário civil”, disse o coronel do exército norte-americano Myles B. Caggins III, porta-voz da coligação. As informações recolhidas, continuou, deveriam ser adicionadas a um banco de dados eletrónico, que podussem ser utilizados pelas autoridades internacionais.
Para os familiares e para os grupos de direitos humanos, questões sobre o papel dessas mulheres no Estado Islâmico deveriam ser determinadas em tribunal, e não presumidas. As mesmas fontes referiram que milhares de crianças agora em campos como o al-Hol ficaram traumatizadas devido à guerra, com pouco acesso à educação. Muitas perderam os pais.
“Os países precisam assumir a responsabilidade pelos seus nacionais presentes nessas instalações de detenção na Síria”, disse Dareen Khalifa, analista sénior do International Crisis Group. “Devem repatriar urgentemente as crianças vulneráveis e investigar a possibilidade de retornar unidades familiares inteiras”.
“Não importa os crimes que os seus pais possam ter cometido”, frisou. “As crianças que estão em campos improvisados no nordeste da Síria são vítimas inocentes do conflito”.
Em entrevistas anteriores ao Washington Post, dezenas de mulheres descreveram que o al-Hol procurava replicar as regra do califado. As suas histórias são complexas. Algumas disseram que viajaram para o califado na crença de que seria um Estado islâmico perfeito, mas ficaram desiludidas com brutalidade e não conseguiram escapar. Outras referiram que ingressaram no grupo na adolescência e não foram capazes de entender a gravidade da sua decisão. Outras ainda que foram coagidas pelos seus parceiros a se juntar ao ISIS.
“Não há vida aqui”, referiu uma holandesa que se identificou como Bint Fatma, indicando que explicou ao filho de cinco anos que provavelmente seriam separados pelas autoridades quando retornassem à Holanda. “Eu preciso prepará-lo”, sublinhou.
O Comité Internacional da Cruz Vermelha pediu na sexta-feira aos países que priorizem o retorno dos seus nacionais. A França anunciou na semana passada o retorno de 10 cidadãos nacionais, entregues às autoridades e agora sob os serviços sociais.