Anunciada como “a primeira app contraceptiva” e aprovada pelo Infarmed como método de controlo da fertilidade, a Natural Cycles já foi associada a casos de gravidezes indesejadas na Suécia, e pode estar a colocar mulheres portuguesas em “risco”, segundo associações de profissionais do sector consultadas pelo ZAP.
Registada no Infarmed, a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, como um dispositivo médico para o controlo da fertilidade em Agosto de 2017, a Natural Cycles está a ser vendida no site oficial da marca como “a primeira app contraceptiva” e “inteligente que previne a gravidez de forma efectiva, sem hormonas”.
A aplicação para telemóvel foi aprovada como dispositivo médico pelo órgão de certificação alemão Tuv Sud, o que a qualifica para o resto da União Europeia. Nos EUA, a FDA, a Agência do Medicamento do país, aprovou-a como método contraceptivo, frisando numa nota de Agosto de 2019 que pode “ser usada para prevenir a gravidez” ou “para planear uma gravidez”.
Contudo, a sua real eficácia na contracepção é posta em causa pelas Sociedades Portuguesas de Contracepção e de Medicina de Reprodução que não a recomendam para esse fim.
Na Suécia, em Janeiro de 2018, houve uma investigação da Agência do Medicamento do país depois de várias mulheres que usavam a app terem feito abortos no Hospital de Estocolmo, devido a gravidezes indesejadas.
Nas conclusões da investigação, frisa-se que estas gravidezes imprevistas vão ao encontro das estatísticas divulgadas pela Natural Cycles que apresentou um estudo que lhe dá uma eficácia de 93% com “uso típico” e de 98% com “uso perfeito”.
Com “uso perfeito”, ou seja, sem falhas, “a pílula tem 99,8%” de eficácia, como refere ao ZAP o presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução (SPMR), Pedro Xavier. “Quando um casal não quer mesmo ter um filho tem que ter uma taxa de eficácia superior a, pelo menos, 99,5%”, acrescenta, realçando que os métodos de contracepção “mais eficazes” são os que “não dependem” da mulher, como o DIU (Dispositivo Intra-Uterino) e o implante hormonal.
No caso da Natural Cycles e de outras apps semelhantes que existem no mercado, “a mulher tem que cumprir rigorosamente as recomendações da aplicação e tem que contar que a aplicação possa falhar pela variabilidade natural da fisiologia do ciclo menstrual”, acrescenta Pedro Xavier.
São “dois factores de risco para falhar” que levam a que, “do ponto de vista clínico”, não seja um método contraceptivo recomendável, acrescenta o presidente da SPMR, alertando que as mulheres que usam a app para esse fim “estão a correr riscos”.
A presidente da Sociedade Portuguesa de Contracepção (SPC), Fátima Palma, reforça em declarações ao ZAP que o seu uso pode ser “perigoso”, por apresentar “mais falhas” do que métodos consagrados como a pílula e o DIU, ou até o preservativo, que foram alvo de estudos ao longo de décadas, ao contrário da Natural Cycles que tem um historial de uso muito menor.
Já o presidente da Federação das Sociedades Portuguesas de Obstetrícia e Ginecologia (FSPOG), Daniel Pereira da Silva, lembra ao ZAP que a “ovulação está longe de ser cronologicamente exacta”, pelo que “o uso da palavra inteligente neste tipo de aplicações e sensores não é recomendável“, pois é um “conceito indutor de uma mais-valia” que não pode ser garantida.
Como funciona a Natural Cycles
Desenvolvida pela física Elina Berglund que fez parte da equipa que ajudou a descobrir o bosão de Higgs no acelerador de partículas do CERN em Genebra, Suíça, a app funciona através da medição diária da temperatura corporal basal (corpo em repouso) que desce nos dias da ovulação.
Todos os dias, antes de se levantar da cama ou logo que se levanta, a mulher deve medir a temperatura com um termómetro de duas casas decimais. Os resultados devem ser introduzidos na aplicação que, através de um algoritmo matemático, calcula o período fértil da mulher com base nos valores registados.
Quando a mulher está no período fértil, a app assinala a informação a vermelho, enquanto que quando não está surge a verde, sinal de que poderá ter relações sexuais à vontade. A par desses indicadores aparece também o alerta “Não considere as previsões como um resultado final”, o que parece bem mais cauteloso do que o discurso promocional da “app contraceptiva inteligente”.
Para que o algoritmo funcione, é preciso ter registos de, pelo menos, três meses e medir religiosamente a temperatura nesse período, idealmente cinco vezes por semana.
“Margem de erro significativa”
Mas mesmo que o procedimento seja cumprido à risca, há sempre uma “margem de erro significativa”, explica ao ZAP Daniel Pereira da Silva, frisando que um “susto” ou um “impacto sob o ponto de vista psicológico pode significar um atraso” na ovulação.
A “matemática” do algoritmo tem o “problema” de dar “sempre o mesmo resultado independentemente das circunstâncias”, “olhando para o histórico”, sem medir “factores de ordem emocional, hormonal ou de alguma alteração de estilo de vida que altere também o ciclo hormonal”, vinca Pedro Xavier ao ZAP.
Fátima Palma reforça também que as “variações do estado de saúde da mulher” interferem com os resultados e nota que estas apps de controlo do período fértil são, no fundo, uma actualização do método antigo de controlo da temperatura a pensar nas “gerações mais novas” e na tendência de crescimento dos defensores dos métodos naturais que são anti-químicos.
“Em vez dos registos serem feitos numa agenda, são feitos na app“, sublinha ao ZAP a presidente da SPC, concluindo que, de qualquer modo, é “melhor do que nada” e considerando que pode ser útil para as “adolescentes aprenderem a conhecer o seu ciclo menstrual”.
Fátima Palma realça que os métodos tradicionais estão descritos “há imensos anos” e que continuam a ser importantes e considerados pela Organização Mundial de Saúde como válidos, nomeadamente para mulheres que não podem usar outras opções por questões de saúde ou religiosas.
O estudo mais recente realizado pela SPC no âmbito das práticas de contracepção em Portugal foi publicado em 2017, com dados relativos a 2015, e aponta que 0,7% das mulheres portuguesas ainda usam métodos naturais ou coito interrompido, enquanto 58,1% usam a pílula, 14,3% o preservativo masculino e 11,8% o DIU.
A SPC não tem dados quanto ao uso da Natural Cycles em Portugal, nem relativamente a outras apps do género.
A app lançada em 2014 tem um custo de subscrição anual de 64,99 euros ou mensal de 8,99 euros, contando com mais de 300 mil utilizadoras em todo o mundo.
Também não é recomendável para ajudar a engravidar
O presidente da SPMR diz ainda que apps de controlo do período fértil como a Natural Cycles “não são muito aconselhadas pelas sociedades científicas e de reprodução porque são bastante condicionadoras da relação sexual” e, consequentemente, do processo de fertilidade.
“Quando um casal está muito motivado para ter uma gravidez e começa a entrar numa espiral de ansiedade porque passaram uns meses e não está a conseguir, a dada altura a relação sexual passa a ser quase uma obrigação” e “a pressão que se estabelece sobre o casal agrava a ansiedade”, frisa Pedro Xavier ao ZAP. Isso acaba por prejudicar “a qualidade da relação sexual” que será “importante para a fertilidade”, embora não seja muito fácil prová-lo, como explica o presidente da SPMR.
“O orgasmo tem inerente ao próprio acto uma série de contracções uterinas que ajudam o transporte dos espermatozóides”, atesta Pedro Xavier. Logo, a ansiedade despoletada pelo uso deste tipo de apps pode interferir negativamente no processo.
Em termos gerais, a SPMR desaconselha “métodos acessórios de ajuda à fertilidade”, pois, geralmente, têm associado “um objectivo comercial muito forte que mais do que ajudar, está a prejudicar”, conclui Pedro Xavier.
O que é certo é que, num futuro próximo, apps e sensores wearable vão ser “o caminho” neste âmbito, acredita Daniel Pereira da Silva que espera “um mundo novo” graças ao uso da Inteligência Artificial em dispositivos médicos.