Somos 8 mil milhões. Bomba populacional ou mito maltusiano?

Já desde o século XVIII que há receios de que o crescimento populacional vai ditar a nossa ruína devido à falta de recursos para toda a gente. Será verdade?

15 de Novembro de 2022. A data de hoje vai ficar na história por assinalar a ultrapassagem da barreira dos oito mil milhões de humanos a viver na Terra — um número que deve continuar a subir nos próximos 60 anos até chegar ao pico de 10,4 mil milhões, apesar do ritmo do crescimento estar a diminuir.

O salto dos sete para os oito mil milhões de habitantes demorou apenas 12 anos, um facto ainda mais impressionante quando o comparamos com os 300 mil anos que a Humanidade precisou para atingir o primeiro milhar de milhão.

Com a população humana a aumentar a este ritmo galopante e as ameaças ao abastecimento de água e de comida à espreita, à boleia da crise climática, é natural que surjam preocupações com a sobrepopulação e a falta de recursos para todos.

A catástrofe anunciada por Malthus

Mas este conceito — que já inspirou filmes como É Proibido Procriar, Inferno, ou À Beira do Fim — não é novo. O conceito da sobrepopulação foi inicialmente abordado pelo economista inglês Thomas Malthus, no seu “Ensaio sobre o Príncipio da População”, publicado em 1798.

“O poder da população é indefinitivamente maior do que o poder da Terra para garantir a subsistência do Homem”. Esta frase soa a algo que o vilão da Marvel Thanos diria, mas na verdade foi a conclusão de Malthus, uma conclusão que é citada sempre os humanos adicionam mais um milhar de milhão à sua população.

No entanto, nenhuma das previsões tenebrosas de Malthus ou dos seus seguidores se concretizou. A razão para isto é simples: Malthus fez as previsões supondo que a tecnologia não iria evoluir. Mais pessoas no mundo implica também mais cabeças a pensar em soluções para facilitar a nossa vida e maximizar o aproveitamento dos recursos, e Malthus não teve em conta este factor.

Na época de Malthus, no início da Revolução Industrial, a grande maioria da população mundial tinha de produzir a sua própria comida e estava muito vulnerável a pragas ou a anos maus que diminuíssem o rendimento das colheitas. No entanto, hoje em dia, a evolução da tecnologia agrícola permite que apenas 2% da população mundial produza toda a comida que consumimos, relata o ZME Science.

As estimativas de Malthus também suponham que a população continuaria a crescer exponencialmente. Mas isto não se verificou. Apesar de a população em termos absolutos continuar a crescer de forma comparável às décadas passadas, o ritmo deste aumento tem caído abruptamente.

A cada dois anos, as Nações Unidas divulgam a sua Perspectiva da População Mundial. A mais recente foi divulgada em Julho deste ano e antevê que a população global atinja o pico de 10,4 mil milhões em 2086, muito antes do que estava previsto anteriormente, quando se antecipava que este valor fosse alcançado em 2100 e que este ainda não fosse o pico populacional.

No entanto, é provável que este número seja atingido muito antes da projecção actual, em 2059. Isto deve-se à evolução da taxa de fecundidade, especialmente nos países em desenvolvimento, que deve cair a pique nos próximos anos graças ao maior acesso das mulheres aos contraceptivos e à educação.

Em 1950, em média cada mulher tinha cerca de cinco filhos. Em 2021, a média já era de 2,3 filhos. A diferença entre o número de filhos que cada mulher tem nos países desenvolvidos e nos países em desenvolvimento está cada vez mais pequena.

Nos países industrializados, a população está até a evoluir a níveis abaixo do limiar de substituição, ou seja, estão a morrer mais pessoas do que as que nascem. A taxa de fecundidade precisa de estar nos 2,1 por mulher para que a população se mantenha estável, mas em Portugal o valor está nos 1,4.

O crescimento da população deve-se maioritariamente a África e antecipa-se que o continente seja o lar de 38% da população mundial até ao final do século. A ONU espera ainda que apenas sete países acolham mais de metade da população mundial até 2050 — China, Índia, Estados Unidos, Indonésia, Paquistão, Nigéria e Brasil.

Até o monstro demográfico que é a China está agora a começar a preocupar-se com a falta de bebés e o envelhecimento da população, depois de décadas da política do filho único. Prevê-se que a Índia ultrapasse a China como o país mais populoso do mundo já no próximo ano.

 

O impacto político do maltusianismo

Apesar das evidências negarem as previsões de Malthus, isto não impediu que o seu ensaio inspirasse vários outros autores. Na segunda metade dos anos 60, após o baby boom vivido com o fim da Segunda Guerra Mundial, os receios foram relatados em vários livros, sendo A Bomba Populacional de Paul Ehrlich o mais conhecido.

O filme de 1973 À Beira do Fim, de Richard Fleischer, também pintava um retrato negro da cidade de Nova Iorque em 2022, que estaria à beira da ruptura por acolher 40 milhões de pessoas. Para alimentar as inúmeras pessoas pobres, existiriam tabletes verdes produzidos através da industrialização de algas, já que somente os ricos tinham acesso a comidas raras, como carnes, frutas e legumes. Mais tarde, o filme revela que estes tabletes verdes eram, na verdade, feitos com carne humana.

Os trabalhos de Malthus também já foram usados para fins menos inofensivos e são repetidamente citados para se justificar eugenia ou a esterilização forçada de certas populações. A teoria da sobrepopulação continua a ser uma das justificações usadas para o genocídio dos Rohingya em Myanmar.

Tudo isto acaba por dar uma má reputação ao economista, que sofre por associação, já que nunca defendeu o uso da violência para se evitar a catástrofe que previa.

Certas facções eco-facistas da extrema-direita também usam a crise climática como argumento para justificar as suas crenças racistas. A lógica é que é a população dos países em desenvolvimento, especialmente em África, que está a alimentar a suposta sobrepopulação, pelo que deve ser restringida a sua população. Como contraste, a população maioritariamente branca dos países mais ricos está a reproduzir-se menos.

 

Os factos facilmente desmentem estas conspirações, já que apesar de se reproduzir a um ritmo mais lento, a população dos países desenvolvidos é muito mais poluidora e consumidora de recursos naturais do que os habitantes dos países mais pobres.

O grande crescimento da população no séxulo XX foi também acompanhado (e causado) por grandes avanços para a Humanidade. Entre 1990 e 2015, a taxa de pobreza extrema global caiu mais de metade.

Nos últimos 200 anos, a literacia evoluiu de forma a que 8 em cada 10 pessoas saibam ler. Há um século, as taxas de mortalidade infantil frequentemente ultrapassavam os 10%, mesmo nos países mais ricos. Hoje em dia, o valor é quase nulo nas nações mais ricas, explica o Salon.

De acordo com Ronald Bailey, autor de The End of Doom, os neo-maltusianos “não podem largar a ideia simples mas claramente errada de que os humanos não são diferentes de uma manada de veados quando se reproduzem”.

Os desafios futuros (e presentes)

Está assim assente que o crescimento populacional não é um bicho-papão que ameaça ditar o nosso fim. No entanto, não estamos livres de perigo, já que a crise climática é real e continuamos a viver além dos nossos meios.

O problema não é haver mais pessoas na Terra, mas sim a distribuição desigual dos recursos, que será exacerbada com a sua maior escassez resultante das alterações climáticas, e o desperdício destes recursos.

Por exemplo, se cada um dos oito mil milhões de habitantes da Terra vivesse como um norte-americano médio, precisaríamos de cinco Terras para que os recursos chegassem para satisfazer as necessidades de todos. A pegada ecológica média de um americano é três vezes maior do que a o de um indiano.

O Relatório Planeta Vivo 2020, da World Wildlife Found (WWF), concluiu que em média precisamos de 1,6 Terras por ano para haver recursos para todos. Se todos vivessem como os portugueses, já seriam necessárias 2,5 Terras anualmente, uma subida em relação aos 2,3 planetas precisos em 2018.

Mesmo dentro de cada país, há grandes disparidades entre as pegadas ecológicas da população dependendo dos seus rendimentos. Um estudo da Oxfam concluiu que as emissões do 1% mais rico da população mundial serão 30 vezes maiores do que aquilo que é necessário para se conseguir manter o aumento da temperatura global abaixo de 1.5ºC, o objectivo que foi assinado no Acordo de Paris.

Em 2017, um relatório da Carbon Majors concluiu que apenas 100 empresas são responsáveis por 71% das emissões de dióxido de carbono desde 1988.

Há ainda o problema do desperdício dos recursos. Quase um terço de toda a comida produzida nunca é consumida. Anualmente, isto traduz-se em 1,3 mil milhões de toneladas de alimentos que são desperdiçados.

No plano demográfico, os países mais desenvolvidos têm ainda muitas dores de cabeça à espera por causa do envelhecimento da população, que colocará em causa a sustentabilidade dos sistemas de pensões e exigirá mais gastos com os serviços de saúde e os cuidados dos idosos.

O próprio Fundo Monetário Internacional declarou que a verdadeira bomba populacional é a “bomba do envelhecimento“. As estimativas da ONU apontam para que, em 2030, uma em cada seis pessoas no mundo tenha mais de 60 anos.

Qual será a resposta? Incentivar a imigração dos jovens dos países desenvolvidos? Criar um novo sistema económico que seja flexível a estas flutuações demográficas? Criar um sistema de segurança social internacional que tenha em conta os interesses de todos os países? As hipóteses são imensas.

Cabe-nos a nossos responsáveis políticos encontrar uma solução que garanta a distribuição mais equilibrada dos recursos e que salve o nosso planeta do desastre climático que se avizinha, ao mesmo tempo que salvaguarda a sustentabilidade financeira dos Estados — o que não promete ser nada fácil.

Adriana Peixoto, ZAP //

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