Numa seita cristã da antiguidade, as mulheres podiam ser “padres”

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Russian Museum / Wikimedia

"Aparição de Cristo a Maria Madalena após a Ressurreição", de Alexander Ivanov.

“Aparição de Cristo a Maria Madalena após a Ressurreição”, de Alexander Ivanov.

Apesar de terem historicamente tido papéis menos relevantes nas chefias da Igreja, as mulheres chegaram a ter cargos importantes no marcionismo e no montismo.

Apesar de representarem um contingente muito significativo entre os fiéis, historicamente o papel das mulheres na Igreja Católica sempre foi relegado a um segundo plano — as funções sacerdotais, por exemplo, só podem ser exercidas por homens.

Um olhar para as comunidades dos primeiros cristãos permite entender que, nelas, realmente a participação feminina costumava ser maior, sobretudo antes de a religião se aliar ao Estado romano, oficializando-se.

Mas naquele período histórico, há quase 2000 anos, havia uma série de divergências teológicas, litúrgicas e organizacionais entre os diferentes grupos de seguidores de Jesus.

E aí, segundo historiadores e teólogos contemporâneos, duas vertentes do cristianismo primitivo destacam-se por essa variável: nelas, as mulheres tinham papéis de igualdade com os homens, a despeito da mentalidade patriarcal presente nessas sociedades na época. Chegavam, inclusive a ocupar postos equivalentes ao de sacerdotes.

São eles o marcionismo, estabelecido por Marcião de Sinope (85-160) e o montanismo, fundado por um teólogo que viveu provavelmente da segunda metade do segundo século à primeira do segundo, conhecido simplesmente como Montano.

Para Marcião, o Deus dos judeus não poderia ser o mesmo que o Deus dos cristãos, já que a mensagem contida nos textos hebraicos — hoje constantes do Antigo Testamento das bíblia cristã — apresentam um ser superior raivoso e vingativo, enquanto Jesus anunciava um Deus amoroso e que sempre perdoava.

“A sua tese era que o Deus dos judeus, portanto aquele encontrado na bíblia judaica, não poderia ser o mesmo Deus de Jesus. O Deus dos judeus, para ele, era um deus étnico, sem equilíbrio, que desconhecia o amor. Um deus muito ruim”, contextualiza à BBC News Brasil o historiador André Leonardo Chevitarese, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e um dos autores do livro Judaísmo, Cristianismo e Helenismo — Ensaios Acerca das Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo.

“Mas o Deus de Jesus é aquele do amor, o Deus que quer congregar, pacífico, universal”, compara.

Marcião foi o primeiro a preocupar-se em organizar um cânone dos textos cristãos. Muitos lembram-se disso como um embrião do que viria a tornar-se a bíblia.

Na sua recolha de escrituras, contudo, descartou tudo o que lhe parecia contaminado pela tradição judaica. O religioso incluiu, de modo especial, as cartas de Paulo. Na verdade, 10 delas, e não as 13 da Bíblia de hoje.

Este ponto é muito importante porque lança luz sobre o entendimento que os adeptos dessa vertente passaram a ter sobre a participação feminina.

Na literatura missivista produzida por Paulo de Tarso, autor daqueles que cronologicamente são considerados os textos mais antigos conhecidos a respeito de Jesus, há uma valorização feminina notável.

Na Bíblia, 13 cartas são atribuídas a Paulo, embora hoje muitos investigadores defendem que apenas sete seriam legitimamente de sua autoria — as demais teriam sido escritas por cristãos posteriores a ele, pois apresentam entendimentos discrepantes ao que se sabe sobre a teologia Paulina.

Uma dessas epístolas, a dirigida aos Gálatas, Paulo diz claramente que, depois do batismo em Cristo, não deve haver mais divisões, e todos devem ser tratados em igualdade, não importam as condições.

“Não há mais nem judeu nem grego, já não há mais nem escravo nem homem livre, já não há mais o homem e a mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo”, afirma.

Já na carta endereçada aos Romanos, o missionário saúda Júnia, uma mulher que seria, segundo o texto, parte do grupo de “apóstolos eminentes“.

Assim, homens e mulheres eram tratados de forma igualitária, sem distinção, pelos seguidores do marcionismo.

Para o teólogo e filósofo Pedro Lima Vasconcellos, professor na Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica, “a proclamação marcionita produziu em Roma e na rede de comunidades cristãs da época um verdadeiro terramoto“.

“[A sua importância maior é que ele, Marcião, foi] o primeiro sujeito na história do cristianismo a elaborar uma espécie de cânone bíblico”, pontua à BBC News Brasil o historiador e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Vasconcellos acredita que a própria construção do cânone cristão, ampliado, modificado e consolidado ao longo dos séculos posteriores, ocorreu como uma reação aos ideais de Marcião.

“A bíblia que conhecemos é, em grande parte, devedora do projeto marcionita que rejeitava a aceitação das escrituras judaicas”, diz.

“O tiro saiu pela culatra porque o resultado é que a gente tem a constituição de uma bíblia que incorpora essas escrituras, mas dá o nome de Antigo Testamento, em reação ao marcionismo.”

O Novo Testamento também teria sido feito, sob esse entendimento, a partir da versão de Marcião.

“A sua importância foi decisiva no sentido de que isso incitou, pela força do terramoto que ele provocou, uma reação contundente por partes das lideranças de outros segmentos desse conjunto cristão. E isso resultaria na configuração da Bíblia“, afirma Vasconcellos.

Há vestígios de que as comunidades marcionistas tenham mantido as suas atividades por pelo menos quatro ou cinco séculos, graças à capilarização da rede de comunidades sobre a qual Marcião exercia influência.

Montanismo

Chevitarese lembra que, nestes primeiros séculos do cristianismo, é preciso entender “os movimentos de Jesus sem Jesus como sendo multifacetados”, “todos eles produtores de literaturas em alguns desses casos”.

“Ou, se não produziram, temos autores a falar sobre elas“, pontua o historiador. “Estes grupos, muitos, seguiram existindo por séculos.”

Vertente surgida logo após o marcionismo, o montanismo também valorizou o papel feminino.

Fundado por um religioso conhecido como Montano em algum momento entre os anos de 156 e 172, a liderança do grupo era dividida por ele com duas mulheres, Priscila e Maximila, que desempenhavam funções sacerdotais.

A história dele e do seu grupo foi registrada no livro História Eclesiástica, obra publicada no século IV pelo bispo Eusébio de Cesareia (265-339).

“Essas duas mulheres que acompanhavam Montano eram profetisas, sacerdotisas”, diz o historiador Moraes.

Antes de se converter ao cristianismo, Montano havia sido sacerdote a serviço dos cultos ao deus Apolo, que na mitologia grega é representado como a divindade solar. Isto, na visão de especialistas, pode explicar como ele passou a ter interpretações diferenciadas do cristianismo.

“Alguns comportamentos dele mostram que ele nunca se libertou dessas convicções“, afirma Moraes.

O movimento liderado por ele tinha um caráter reformista e fundamentalista, buscando uma reconexão com a mensagem original de Jesus.

“Ele era contrário a um certo episcopado monárquico que começava a organizar-se”, comenta o historiador.

E, nesses grupos, era comum a participação ativa das mulheres, não só pelas duas sacerdotisas líderes.

“Nesse sentido ele copiava o sacerdócio feminino que havia [no culto] ao deus Apolo”, compara.

“As mulheres foram importantíssimas para o pensamento de Montano”, enfatiza Moraes.

ZAP // BBC

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1 Comment

  1. Também as queria ver na trolhice, nos camiões do lixo, e outros trabalhos perigosos!
    E já agora tropa obrigatória, mas em igualdade, não como Israel que só os homens vão para a linha da frente!
    Igualdade ou não?!
    Só para o que interessa?!

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