Quem é a “Dama de Ferro” com raízes portuguesas que vai desafiar Maduro em 2024?

Miguel Gutierrez/Lusa

Maria Corina Machado

Sob o lema “até ao fim”, ganhou as eleições primárias da oposição por uma ampla margem de votos e prepara-se para afastar Maduro e o poder chavista da Venezuela. Mas há um problema: não pode concorrer.

“Sugiro que venças as primárias”, disse Hugo Chávez a María Corina Machado em janeiro de 2011, durante um discurso em que a então deputada de 44 anos, interpelou o presidente. “Não está ao meu nível para discutir comigo (…) Águias não caçam moscas”, acrescentou o já falecido presidente.

No domingo, 12 anos após a célebre resposta de Chávez, Machado venceu com uma ampla margem as eleições primárias da oposição venezuelana, tornando-se pela primeira vez líder do movimento de oposição ao chavismo, liderado por Nicolás Maduro desde 2013. Os primeiros resultados deram-lhe uma enorme vantagem de 92,6% dos votos, com 64,9% das mesas já contabilizadas.

Dezenas de milhares de venezuelanos que residem no estrangeiro, que durante anos estiveram excluídos do processo eleitoral, participaram desta vez nas primárias da oposição — e a participação de quase um milhão e meio de eleitores superou as expectativas.

As eleições foram realizadas sem apoio estatal, com censura aos meios de comunicação locais e obstáculos logísticos, técnicos e orçamentais. O anúncio do resultado atrasou devido a um “bloqueio” na ligação, e uma parte da oposição chegou a pedir que as eleições fossem canceladas ou ignoradas. Os organizadores consideraram as eleições um “sucesso”, no entanto, pois mostraram a vitalidade do eleitorado de oposição e a vontade de muitos venezuelanos de participar num processo democrático.

A “Dama de Ferro”: oposição radical e proximidade dos EUA

Acusada de receber ilegalmente dinheiro de fundações americanas, o que lhe valeu a proibição de sair do país durante três anos, foi sempre vista pelo chavismo como colaboradora do “golpe imperialista”.

Em 2010, chegou à Assembleia Nacional como deputada independente e com um discurso anticomunista e crítico às expropriações.

Foi nesse período, em 2012, que disputou as primárias da oposição, perdendo por larga margem para Henrique Capriles, que concorreu, mas retirou-se da corrida à última hora. Em 2014, juntamente com Leopoldo López, Machado impulsionou um movimento de protesto para afastar Maduro do poder, o que lhe custou o cargo na Assembleia por acusação de conspiração golpista.

Desde então, tornou-se uma das lideranças mais radicais da oposição: promoveu protestos em 2017 e 2019, passou a classificar o governo como uma ditadura, rejeitou todas as tentativas de negociação com o chavismo, defendeu o uso da força para destituir Maduro e opôs-se aos principais partidos da oposição, acusando-os de serem “colaboracionistas“.

Quando muitos viam a sua liderança a diminuir, manteve-se firme nas suas posições, construindo uma base de apoio e recusando-se a abandonar o país, opção que muitos opositores acabaram por tomar.

A sua trajetória política — provavelmente somada à tradição metalúrgica valeu-lhe o epíteto de “dama de ferro” e à medida que as lideranças de Capriles, López e Juan Guaidó se foram desgastando, surgiu como a opção mais óbvia para enfrentar Maduro.

Realizou uma campanha fulgurante por todo o país sob o lema “até ao fim”, apesar das perseguições e das várias agressões que sofreu — chegaram a atirar-lhe sangue animal.

Durante a campanha apresentou propostas como a abertura da economia ao investimento internacional, a privatização de algumas empresas de um Estado que se espera que encolha, a procura de empréstimos junto a bancos de desenvolvimento e a promoção da exploração privada das reservas de petróleo, consideradas as maiores do mundo.

Esta resiliência, talvez teimosa, que não é nova nem invulgar nos políticos venezuelanos, finalmente rendeu frutos a Machado no domingo. Mas há um problema: Machado — apelido que herdou “de uma família de Portugal, com já vários séculos na Venezuela”, disse à Lusa —, está impossibilitada de concorrer a cargos públicos.

Não pode concorrer?

A 30 de junho o fiscalizador das finanças das instituições públicas da Venezuela, a CGR, anunciou que a antiga deputada está impedida de exercer cargos públicos por um período de 15 anos. A decisão foi divulgada depois de Machado formalizar a sua candidatura às primárias da oposição.

A CGR explicou que foi feita uma auditoria patrimonial encontrando-se que, ao abrigo da Lei Contra a Corrupção, Machado teria incorrido em “atos, factos, omissões e irregularidades” que “atentam contra a ética pública, a moral administrativa, o estado de direito, a paz e a soberania” da Venezuela.

O fiscalizador acrescentou que houve omissão nas declarações de 50% dos fundos que Machado administrou em vários bancos nacionais em bolívares e em moeda estrangeira. Machado disse na altura que a decisão da CGR tinha motivações políticas.

Além disso, a unidade da oposição é frágil e claramente a vontade do governo de Nicolás Maduro — e das Forças Armadas — continua a ser a variável mais importante na equação política venezuelana.

A vitória de Machado é apenas o primeiro avanço num processo que, como sempre na política venezuelana, promete ser, como diz o coloquialismo venezuelano, “pelúo”, ou seja, difícil de resolver.

O que se segue? Há três cenários

Com o capital político que conquistou nas primárias, Machado terá margem para influenciar a estratégia de uma oposição cujo desafio continua a ser manter a unidade.

Embora um dos pontos do acordo assinado em Barbados sugira “um caminho para que os inelegíveis e os partidos recuperem os seus direitos políticos”, especialistas não antecipam que isso venha a ocorrer no caso de Machado, que segundo as sondagens de intenção de voto derrotaria Maduro.

A candidata ainda não deu indicações sobre como tenciona dar continuidade ao processo, mas Luís Vicente León, um dos mais influentes especialistas em sondagens de opinião e analistas políticos do país, projeta três cenários além da improvável autorização das autoridades para que ela possa ocupar cargo político.

“Um é que Machado exija que o povo a defenda nas ruas e que isso origine novos conflitos e deslegitimação eleitoral; outra é que Machado se sinta com o direito de escolher quem será o candidato, com o risco de os outros não aceitarem, o que gerará outra fratura; e um terceiro cenário é que a oposição tenha de escolher um candidato substituto, o que nos levaria ao ponto de partida, mas com uma Machado mais forte”, afirma o diretor da empresa de sondagens Datanalisis.

O que quer que venha a acontecer na definição do candidato terá impacto na mesa de negociações entre o chavismo e a oposição, onde os EUA são, na prática, uma das partes envolvidas devido à questão das sanções.

Machado critica há anos estes processos de diálogo com um governo que considera “ilegítimo” e “criminoso”. A questão é se agora, como líder, irá moderar a sua postura. O mundo — e especialmente a Casa Branca — estará atento.

ZAP // BBC / Lusa

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