Número de cromossomas confirmou o cruzamento e análise ao ADN mitocondrial concluiu que a linhagem da mãe de “Dogxim” (ou “Graxorra”) vinha da raposa-das-pampas.
Um animal parecido com um cão foi encontrado após ser atropelado numa estrada do município de Vacaria, no Rio Grande do Sul, Brasil. A fêmea foi resgatada ainda com vida pelo biólogo Herbert Hasse Junior, em colaboração com a patrulha ambiental da cidade.
Numa primeira análise, o especialista identificou a vítima do acidente de trânsito como uma espécie silvestre, que foi de seguida encaminhada para o hospital veterinário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que conta com uma equipa especializada em lidar com casos semelhantes. E é a partir da sua chegada ao veterinário que a história sofre uma primeira surpreendente reviravolta.
Ao retirar o animal ferido da caixa de transporte, a investigadora Flávia Ferrari reparou que ele era muito diferente da raposa-das-pampas. Ao The Telegraph, diz que a “Dogxim” ou “graxorra” — como alguns a batizaram — era “um fantástico animal”.
“Ela tinha uma personalidade tímida e cautelosa, normalmente preferia ficar longe de pessoas. Não era tão dócil como um cão, mas não tinha a agressividade esperada de um canídeo selvagem”.
A espécie, semelhante a uma raposa, tem pelo bege e cinza e é endémica da América do Sul, especialmente encontrada em áreas da Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e região sul do Brasil. Apesar de ser conhecida popularmente como uma raposa, trata-se de uma espécie diferente.
O animal foi então transferido para o canil, que trabalha com espécies domésticas, e seria aí que se registaria a segunda surpresa — o comportamento do animal não era nada semelhante ao de um cão. Recusou-se, por exemplo, completamente a comer ração.
Os cuidadores decidiram então fazer um experiência e ofereceram pequenos roedores ao misterioso animal. Ele comeu sem pestanejar, tal como faria uma raposa-das-pampas. A vítima de atropelamento seria enviada mais uma vez para o setor de animais silvestres.
Cão ou raposa? Cromossomas responderam
A dúvida mantinha-se, mesmo quando o geneticista Thales Renato Ochotorena de Freitas, do Instituto de Biociências da UFRGS, foi convidado a dar o seu parecer.
“A primeira coisa que me chamou a atenção foi a cor do pelo, que era bastante escura. Além disso, ele latia tal e qual um cão“, recorda o cientista. Sabe-se que as raposas-das-pampas emitem um ganido breve e agudo.
Pairava ainda a questão: afinal, a que espécie pertencia o misterioso animal?
Para responder a essa pergunta de forma definitiva, Freitas falou com outros dois especialistas. O primeiro, o citogeneticista Rafael Kretschmer, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), foi encarregado de analisar os cromossomas (estruturas que dão casa a todo o material genéticode um ser vivo) do animal.
Se o animal atropelado fosse um cão doméstico (Canis lupus familiaris), teria 78 cromossomas; caso fosse uma raposa-das-pampas (Lycalopex gymnocercus), contaria com 74 unidades da estrutura. “Ao fazer a análise, descobrimos que o animal tinha 76 cromossomas“, relata Kretschmer.
O único canídeo que aparece no Rio Grande do Sul com esse número de cromossomas é o lobo-vermelho (Chrysocyon brachyurus), mas os cientistas descartaram essa ideia de imediato de o indivíduo devido às próprias características físicas do animal-mistério. Chegaram, então, a uma outra conclusão: o animal não era um cão ou uma raposa-das-pampas, mas, sim, uma mistura das duas espécies.
O número inusitado de cromossomas pode ser facilmente explicado pelo cruzamento entre representantes das duas espécies: do cão, vieram 39 cromossomas (metade do total). Da raposa-das-pampas, 37. A soma combinada dos dois atinge exatamente aos 76 cromossomas encontrados pelo laboratório brasileiro. Para confirmar a inédita descoberta, a bióloga Bruna Elenara Szynwelski, da UFRGS, fez uma análise dos genes do híbrido.
“A primeira coisa que observámos foi o ADN mitocondrial, que é herdado exclusivamente da mãe” aponta a especialista. O ADN mitocondrial fica fora do núcleo da célula, separado do restante ADN, numa estrutura responsável pela geração de energia — a mitocôndria. “E foi aí que observamos que a linhagem materna do indivíduo era de raposa-das-pampas“, informa Szynwelski.
Ao analisar o ADN completo, os investigadores descobriram partes de genes exclusivos dos cães, tal como outros que só aparecem nas raposas-das-pampas. A partir daí, puderam concluir definitivamente que a vítima do atropelamento era um híbrido. É a primeira vez que o fenómeno é descrito detalhadamente na América do Sul (há casos semelhantes registados com outros canídeos em África, na Europa e na América do Norte).
A descoberta, publicada na revista Animals no início de agosto, foi classificada como “rara” e “surpreendente” pelos envolvidos no trabalho. Afinal, apesar de pertencerem à mesma família — os canídeos — o cão e a raposa-das-pampas são parentes relativamente distantes na árvore evolutiva.
Após a recuperação das lesões do atropelamento, o híbrido foi castrado e enviado ao Mantenedouro São Braz, um santuário e zoológico sediado em Santa Maria, também em terras de Rio Grande do Sul.
Reviravoltas e aprendizagens futuras
Os envolvidos na investigação suspeitam que o mesmo animal já tinha sido avistado antes, noutras ocasiões.
Em 2019, Hasse Junior — o mesmo biólogo que realizou o resgate em 2021 — avistou um canídeo com uma aparência estranha na região de Vacaria.
Na altura, gravou um vídeo e a equipa acredita que se trata do mesmo animal, uma vez que é possível ver uma mancha branca no tórax de ambos os animais nos registos obtidos em 2019 e 2021.
Mas a história reservou ainda uma terceira surpresa menos agradável para todos os envolvidos. Um dia depois da entrevista à BBC News Brasil, realizada a 29 de agosto, os investigadores da UFRGS enviaram um email com uma notícia inesperada.
“Assim que terminámos a reunião, ligamos para o santuário [o Mantenedouro São Braz] para solicitar fotos atuais do híbrido”, escreveram os autores do estudo.
“Quem atendeu informou-nos que o animal morreu há cerca de meio ano“, lia-se. Os cientistas confirmaram a informação numa segunda interação via WhatsApp com o mantenedouro, mas ainda estão a tentar entender o que causou a morte do animal. A BBC News Brasil também tentou contactar o Mantenedouro São Braz, mas não recebeu qualquer resposta.
Fenómeno “pode ser bastante prejudicial”
Enquanto ainda tentam descobrir o que está por trás da morte do híbrido, os especialistas avaliam os possíveis impactos que os cruzamentos entre espécies de canídeos podem ter.
“O fenómeno pode ser bastante prejudicial, por diferentes razões”, diz Szynwelski.
“Um deles é a adaptação do animal na natureza. A raposa-das-pampas tem uma coloração próxima do habitat, o que permite uma camuflagem para caçar e para se esconder dos predadores. Já o híbrido, que nasceu com pelo escuro, não tem o mesmo atributo”, explica.
“E há uma possível troca de doenças entre espécies. Os cães domésticos podem passar certas condições para animais selvagens e isso torna-se um problema sério”, antevê Freitas.
“Quando pensamos na conservação de espécies, temos de fazer projeções a longo prazo. Agora vamos explorar e estudar todas essas questões”, conclui Szynwelski.
ZAP // BBC